30 abril 2007

ESTA É A CIDADE


Esta é a Cidade, e é bela.
Pela ocular da janela
foco o sémen da rua.
Um formigueiro se agita,
se esgueira, freme, crepita,
ziguezagueia e flutua.
..
Freme como a sede bebe
numa avidez de garganta,
como um cavalo se espanta
ou como um ventre concebe.
..
Treme e freme, freme e treme,
friorento voo de libélula
sobre o charco imundo e estreme.
Barco de incógnito leme
cada homem, cada célula.
É como um tecido orgânico
que não seca nem coagula,
que a si mesmo se estimula
e vai, num medido pânico.
..
Aperfeiçoo a focagem.
Olho imagem por imagem
numa comoção crescente.
Enchem-se-me os olhos de água.
Tanto sonho! Tanta mágoa!
Tanta coisa! Tanta gente!
São automóveis, lambretas,
motos, vespas, bicicletas,
carros, carrinhos, carretas,
e gente, sempre mais gente,
gente, gente, gente, gente,
num tumulto permanente
que não cansa nem descansa,
um rio que no mar se lança
em caudalosa corrente.
..
Tanto sonho! Tanta esperança!
Tanta mágoa! Tanta gente!

António Gedeão

26 abril 2007

LAMENTO


Vento...
Tempo...
Porque passais a correr,
Se nunca eu vos vi parar?
Dai-me tempo para amar...
Nem o tempo nem o vento
Páram naquele momento
Em que tudo o que eu mais queria
Era senti-los parar...
Ah, se eles parassem...!
E quando devem correr,
Tanto o vento como o tempo
Movem-se num lamento,
Como se eles também chorassem...
Diz-me tempo!
Diz-me vento!
Porque me dais este castigo?
Devíeis correr depressa e, ao invés,
Chorais comigo...

Luis Beirão

23 abril 2007

ADEUS


Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certezade que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade

20 abril 2007

NOTAS, ACONTECIMENTOS & EVENTOS VI

Sábado, 21 de Abril - 22 h

Local: Crestuma, bar Canto da Areia (sede do Clube Náutico de Crestuma)
Tema: 25 de Abril de 1974
Participantes: Alexandra Mota, Ana Afonso, Anthero Monteiro, Luis Carvalho, Carlos Andrade (viola) e, claro, o público que quiser participar.
Colagem de textos de variados autores e músicas alusivas à época.

AGORA ESCREVO


Que queriam fazer de mim?

Uma palavra, um gemido obsceno,
Uma noite sem nenhuma saída,
Um coração que mal pudesse
Defender-se da morte ,
Uma vírgula trémula de medo
Num requerimento azul, azul,
Uma noite passada num bordel
Parecido com a vida , resumindo
Brutalmente a vida!

A chave dos sonhos , o segredo
Da felicidade, as mil e uma
Noites de solidão e medo,
A batata cozida do dia-a-dia,
O muscular fim-de-semana,
As sardinhas dormindo,
Decapitadas , no azeite,
O amor feito e desfeito
Como uma cama
E ao fundo - o mar ...

Mas defendi-me e agora escrevo
Furiosamente, agora escrevo
Para alguém:

Lembras-te meu amor, dos passeios que demos
Pela cidade?
Dos dias que passámos
Nos braços da cidade?
Coleccionámos gente, rostos simples, frases
De nenhum valor para além do mistério
Também simples do nosso amor.
Inventámos destinos, cruzámos vidas
Feitas de compacta vontade,
De dura necessidade, rostos frios
Possuídos por uma ausência atroz,
Corpos extenuados mas sem nenhum sono para dormir ,
Olhos já sem angústia, sem esperança, sem qualquer
Pobre resto de vida!
Seguimos a alegria das crianças, agressiva
Como carvão riscando uma parede,
Aprendemos a rir ( oh! que vergonha!...)
Com a gente " ordinária", e calados
Descemos até ao rio - e ali ficámos
A ver !

O amor continua muito alto,
Muito acima, muito fora
Da vida, muito raro
E difícil : maravilhoso
Quando devia ser fiel,
Fiel em cada dia,
Paciente e natural em cada dia,
Profundo e ao mesmo tempo aéreo,
Verde e simples,
Como uma árvore!

Ganhámos juntos o que perdemos separados:
A luz incomparável, esta luz quase louca
Da primavera, esta gaivota
Caída dos ombros da luz,
E a leve , saborosa tristeza do entardecer,
Como uma carta por abrir,
Uma palavra por dizer...

Ganhámos juntos o que vamos perdendo
Separados:
A alegria - inocente
Cidade,
Coração aberto pela manhã,
Pequeno barco subindo
Nitidamente o rio,
Fumegando, fumando
Com o seu ar importante de homenzinho...
E a ternura - beijo sobrevoando
O teu rosto fiel,
Fogo intensamente verde sobre a terra,
Intensamente verde nos teus olhos,
Pequeno " nariz ordinário"
Que entre os meus dedos protesta
E se debate...

Duas árvores de avanço,
Uma corrida louca ...
...E o teu coração na minha boca !

E o amor,
Não o que destrói, o que não é amor,
Não a fúria dos corpos quando trocam
Desespero por desespero,
Não a suprema tristeza de existir,
A obscena arte de viver,
A ciência de não dar e receber,
Mas o amor que se traduz
Pela bondade, a confiança,
A pureza , a fraternidade,
A força de viver, de triunfar da morte,
De triunfar da sorte,
A vertigem de conhecer
Necessidade e liberdade!
Ganhámos juntos o que vamos perdendo separados.

Flechas velocíssimas
Nossos sonhos voavam
Em direcção à vida,
E era na vida que queriam acertar,
Era na vida que queriam morder,
Era à vida que nos queriam ligar !

Nos nossos sonhos entrava gente viva,
Entravam cartas, poemas, versos
Tão cheios de sentido como ruas
E ruas plenas de ritmo e sentido,
Como os melhores versos.
Entravam amigos, desejos, lutas
E esperanças comuns,
Recordações, amores antigos
Como navios perdidos muito ao longe
Ou já imóveis sob anos e anos de silêncio,
Leituras discutidas, evocadas: sonhos
E destinos próximos, tristezas e alegrias semelhantes,
Vidas exemplares,
Vidas fulgurantes de vida !

Michaud, o que dizia
A cada passo : " Et comment!"
Para exprimir o seu apego à vida,
A sua indomável alegria!
e N-2 e Berta,
Um ao outro presos
Como fantasmas,
Mas vivendo e ajudando a viver !
E Éluard, os seus poemas
Simples como gestos de alegria,
Directos como palavras
De justa cólera,
Irreprimíveis como beijos
Quentes de ternura,
Completos como pássaros
Rápidos no azul !
E muitos outros ainda,
Muitas outras vidas,
Reais ou inventadas
Exemplarmente do real!

Nos nossos dias entravam dúvidas e erros,
A terrível solidão de certas horas
Sem um ombro amigo,
O coração abandonado, flutuando
Como um peixe morto, um resto
De calor dentro do frio.

Dúvidas, erros,
E a tentação de levantar andaimes,
De entrar " em obras", de instalar
Em cada dia um " problema"
E de dourar
O " problema" de cada dia ...

Mas não só a dúvida e o erro
O coração entornado, a cabeça perdida
Entravam nos nossos dias,
Porém
Tratava-se de realizar.

" Realizar" : fazer passar
Para a realidade,
Pôr em prática os sonhos,
Ideias, teorias.
Por exemplo : a indústria,
A agricultura realizam
Certas teorias
Químicas, físicas,
Biológicas.
Por exemplo : hoje
Estão a ser realizados
Os mais velhos
Sonhos do homem.
Por exemplo - mais pessoal
Mas não menos importante:
Em ti
Via realizados os meus sonhos !

Alexandre O'Neill

18 abril 2007

TODAS AS CARTAS DE AMOR SÃO RIDÍCULAS


Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Álvaro de Campos

16 abril 2007

NOTAS, ACONTECIMENTOS & EVENTOS V

QUARTA, 18 de Abril

22 h - 2ª Sessão das Quartas MalDitas

Local: Clube Literário do Porto (quem vai do Infante - Mercado Ferreira Borges - para a Alfândega, do lado direito da rua. Entrada livre)
Tema: Precursores de Abril (em traços genéricos, poesia da geração antes do 25 de Abril, embora não só)
Convidado desta sessão: João Pedro Mésseder
Piano: José Veloso Rito
Presença dos MalDitos habituais, com leitura de poemas de Egito Gonçalves, Joaquim Pessoa, Jorge de Sena, Ary dos Santos, José Gomes Ferreira, José Jorge Letria, Manuel Alegre, Mário Dionísio, Miguel Torga e Sophia de M. B. Andresen.

24 h - Sessão Habitual de Poesia às Quartas do Púcaros Bar (um pouco mais à frente, nos Arcos de Miragaia)

15 abril 2007

CARROSSEL


Para cima para baixo
para o lado
gira e torna a girar
na vertigem do carrossel
só não podes é parar.
inverte agora o sentido
gira e torna a girar
não soltes nem um gemido
gira o corpo e a cabeça
deixa-te descontrolar.
No carrossel desta vida
há ritmo velocidade
passam rostos de fugida
ficam laivos de saudade.
Gira agora uma vez mais
e volta ainda a girar
na vertigem do carrossel
só não podes é parar.
Há cervejas e sorrisos
há máscaras hipocrisias
há luzes há sons há guizos
há desfiles de manias.
Egos achados perdidos
em rotas de colisão
por vezes alguns juízos
momentos saboreados
em nome da ilusão.
E gira e gira
e torna a girar
na vertigem desta vida
só não podes é parar.
Anda no ar alegria
tontura desenfreada
no carrossel vale tudo
só não vale fazer nada.
Mas se acaso a festa acaba
E o carrossel parado...
Acabaram-se os sorrisos
já não há luzes nem guizos
diluiu-se a alegria
acabou a ilusão.
Descobre-se então amigos
que estava podre a magia:
que sobra a hipocrisia
o desfile da mania
egos achados perdidos
em rota de colisão.
E enfim à luz do dia
a vertigem é vazia
sem tontura a temperar...
Mas se o carrossel for ligado?
Gira e gira
e volta a girar
na vertigem da viagem
deixa-te descontrolar.
No carrossel vale tudo...
Só não podes é parar !


Luis Beirão

12 abril 2007

QUATRO E MEIA DA MANHÃ


Os barulhos do mundo
com passarinhos vermelhos
são quatro e meia da
manhã
são sempre
quatro e meia da manhã
e eu escuto
os meus amigos:
os lixeiros
e os ladrões
e os gatos a sonhar com
minhocas,
e as minhocas a sonharem
os ossos
do meu amor,
e eu não posso dormir
e em breve vai amanhecer,
os trabalhadores vão levantar-se
vão procurar por mim no estaleiro
e dirão:
ele está bêbado novamente,
mas eu estarei adormecido,
finalmente, no meio das garrafas e
da luz do sol,
toda a escuridão acabada,
os braços abertos como
uma cruz,
os passarinhos vermelhos
voando,
voando,
rosas a abrirem-se no fumo
e
como algo esfaqueado e a cicatrizar,
como 40 páginas de um mau romance,
um sorriso estampado
na minha cara de idiota.

Charles Bukowski (traduzido livremente do ingles)

Alguns dados sobre o autor: Poeta, contista e romancista americano nascido na Alemanha. Teve problemas com alcoolismo e trabalhou como carteiro e motorista de camião entre outras coisas, apesar de ter estudado jornalismo. É geralmente identificado (muitas vezes erradamente) com a Beat Generation (Kerouac, etc). A cidade de Los Angeles e as suas ruas e atmosfera foram a sua principal influência, tratando de histórias por vezes obscenas em que mistura (por exemplo) bebida, corridas de cavalo, prostitutas, música clássica, histórias de relacionamentos baratos, etc. Dedicava-se a leituras de poesias em universidades e eventos culturais, num certo estilo debochado que as vezes provocava escândalos e brigas com o público.

10 abril 2007

PAISAGEM


Nada mais me resta
Senão a certeza,
Esta única certeza firme
E sólida,
De que a minha alma está insatisfeita
E busca em todos os rostos,
Em toda a parte, algo,
Alguma coisa, uma voz que diga:
Aqui estou.
Aqui está.
Esta a tua cura,
Aquilo que toda a vida tens buscado.
*
Algo que possa mover-me,
Comover-me,
Fazer-me sair desta apatia,
Desta falta de gosto pela acção,
Que não é natural
Mas antes premeditada,
Fundamentada
No princípio de que nada...
*
Nada vale a pena!
*
Em todo o lado,
Em toda a gente,
Encontro apenas rotina,
O standard, o normalizado.
E a minha boca sequiosa pede água,
(Apenas um travo!)
Anseia por um oásis ou um lago
Em pleno deserto...
*
Entretanto, o céu continua
De um tedioso azul,
O sol continua a bater odiosamente
Na minha cabeça,
E a areia prolonga-se
Até ao infinito...
Sempre a mesma...
Sempre a mesma...
E quando tento lançar um grito,
Ele ecoa no vazio,
Dilui-se num mar de azul,
Esmorece afogado no nada.
*
E a paisagem permanece...
Inalterada.
*
De dia, o sol entediante e abrasador,
E à noite sempre o mesmo frio.
*
E no horizonte,
Não surge nenhum mastro,
De nenhum navio....

Luis Beirão

03 abril 2007

ESTA VELHA ANGÚSTIA

*
Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.

Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim...

Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer -
Júpiter, Jeová, a Humanidade -
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Estala, coração de vidro pintado!

Álvaro de Campos

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