31 janeiro 2008

NÃO SE MATE...


Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para as bodas
que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas, vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, pra quê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe...
..........nem saberá.


Carlos Drummond de Andrade

Nota1: De facto, quem saberá?
Nota2: Como sempre, o realce de certas palavras e algumas divisões de versos são da minha responsabilidade. Aconselha-se a consulta do poema original.

21 janeiro 2008

UMA PAIXÃO


Visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com o teu rosto de Modigliani suicidado

tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores
vem

ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos
vem

antes que desperte em mim o grito
de alguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-se quando a tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro
perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água
vem

com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te



Al Berto

14 janeiro 2008

PÁSSARO NEGRO


Ei-lo ainda e sempre
..........uma outra vez
grande pássaro negro
.........................abate-se
surge a pairar com a sua sombra
................................imensa
......................que tudo impregna
...........que tudo envolve
......................que tudo cobre
.............tudo acolhe
sob o seu manto protector
feito de noite e de escuridão
uma angústia indefinível toma posse de mim
uma consciência aguda
....................violenta
..............dolorosa
da profunda solidão
que me rodeia
na qual estou imerso
.................embebido
............submerso
.................afogado
por mais voltas e voltas que dê
por mais gestos e movimentos que esboce
não consigo sacudir esta sombra descomunal
.................................este negrume
que se infiltra por todos os interstícios
da minha alma
as noites prolongam-se sobre as noites
todas elas imensas
.............infindáveis
a cama nunca me espera
nunca nada me espera
sou sempre eu a esperar
..a esperar por nãoseioquê
................pelo que não existe
pelo que não há
................pelo que não vem
por vezes a minha cama tem quatro rodas
move-se vertiginosamente pelo asfalto
outras vezes permanece imóvel
debaixo de um plátano
na lateral de uma qualquer rua deserta
ah... vontade imensa de sacudir esta pele
de me metamorfosear
num outro (qualquer) eu
....não importa qual
.....desde que outro
que angústia
se apossa de mim
.......se entranha
..........se insinua
consciência súbita
da quantidade de mar
que separa a minha árida
................pequena ilha
de todos esses imensos continentes
na direcção dos quais estendo avidamente
as mãos os braços
..........os lábios
..........todo o meu ser
sem que contudo almeje sequer
vislumbrar
.....alcançar
um (outro) árido pedaço
de uma qualquer (outra) realidade
com a qual me possa ao menos
sentir levemente solidário
........dou-me desesperadamente
dou-me furiosamente
........dou-me violentamente
a todos os dias estúpidos
...que se sucedem
.........que giram rodopiam
perante a minha alma assombrada
com a velocidade
........o ritmo frenético
..................estonteante desenfreado
com que se move o resto do mundo
...dói-me a realidade
...doem-me as ruas desertas
os letreiros de néon da cidade
.......dói-me a alma
......doo-me eu mesmo
ergo os olhos para o alto
.........se o meu destino é a cruz
.........porquê a angústia da via sacra?
dou-me incessantemente
........até ao limite até ao tutano
........até nada mais me restar
senão esta sombra
.....esta negritude por onde comecei
este devaneio
.......pássaro negro
pássaro triste
............pássaro louco
pássaro tonto
..............pássaro desvairado
que sucessivamente
persiste insiste
em voar teimosamente
................como uma seta
em estatelar-se
violenta e aparatosamente
contra estes muros

............imponentes
............altivos
............imóveis
............inexpugnáveis
..........de frio
................sólido
.........impiedoso
e implacável
...............granito...

Luis Beirão
Nota: ainda não sei bem o que isto é, nem se é a sua forma definitiva. Em todo o caso, apeteceu-me muito deixá-lo aqui.

EVENTOS POÉTICOS DESTA SEMANA

Hoje, Segunda, pelas 21.30 h, Bar Dominó do Casino de Espinho
Sessão nº112 da Onda Poética

Poemas diferentes, isto é, sugestões poéticas menos habituais (poetas ou poemas menos conhecidos). Voz e guitarra acústica de Carlos Andrade.

Nota: ao contrário do habitual, não irei estar presente, mas ainda assim divulgo. Quem tiver tempo, vale a pena aparecer por lá.

Quarta (dia 16) pelas 22 h, Clube Literário do Porto

Sessão das Quartas MalDitas, subordinada ao tema "A poesia do Olhar"
Convidado: Prof. Agostinho Ribeiro
Música a cargo de: Rui David
Poemas ditos por: Anthero Monteiro (coordenação), António Pinheiro, Diana Devezas, Joana Padrão, Luís Carvalho, Mário Vale Lima, Marta Tormenta, Rafael Tormenta.

Para mais informações, saber morada, contactos, etc, clicar aqui

08 janeiro 2008

ABDICAÇÃO


Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho... eu sou um rei
que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mão viris e calmas entreguei;
E meu ceptro e coroa - eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços
.
Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.
.
Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia...
.
.
Fernando Pessoa
.
.
.
Nota: mais um bem conhecido, mas nem por isso menos pertinente, do Pessoa. Porque sim. Num primeiro nível, porque bastas são as vezes em que apetece abdicar, regressar "à noite antiga e calma". Finalmente, e a outro nível, há vezes em que se deve mesmo saber abdicar, pois sem algum despojamento em relação ao nosso trono, ao ceptro e à espada, nunca seremos mais do que tronoceptroespada, e nada mais nos restará se um dia os viermos a perder.

03 janeiro 2008

RECEITA DE ANO NOVO



Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arcoris, ou da cor da sua paz, Ano Novo
sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa de beber champanhe ou qualquer outra birita*,
não precisa de expedir nem receber mensagens
(plantas recebem mensagens?
passam telegramas?)

Não precisa
de fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa de chorar arrependido
pelas besteiras* consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.


Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.


Carlos Drummond de Andrade

Notas: porque me não soa bem, a minha tendência involuntária é sempre procurar adaptar mais os poemas brasileiros ao português europeu. Mas não queria que o original se perdesse. Assim sendo, a itálico simples estão os termos ou letras que acrescentei ou alterei. As duas palavras com asterisco não lhes mexi, mas assinalo pois são palavras brasileiras típicas. Besteira dispensa explicação. Quanto a birita, para quem não sabe, é uma bebida forte, cachaça ou aguardente - isto, segundo o dicionário.

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