22 setembro 2016

A VERDADE


Eu tinha chegado tarde á escola. O mestre quiz, por força, saber porquê. E eu tive de dizer: Mestre! Quando sahi de casa tomei um carro para vir mais depressa mas, por infelicidade, deante do carro cahiu um cavalo com um ataque que durou muito tempo. 

O mestre zangou-se comigo: Não minta! Diga a verdade! 

E eu tive de dizer: Mestre! Quando sahi de casa... minha mãe tinha um irmão no extrangeiro e, por infelicidade, morreu hontem de repente e nós ficámos de lucto carregado.

O mestre ainda se zangou mais comigo: Não minta! Diga a verdade!! 

E eu tive de dizer: Mestre! Quando sahi de casa... estava a pensar no irmão de minha mãe que está no estrangeiro há tantos annos sem escrever. Ora isto ainda é peor do que se elle tivesse morrido de repente porque nós não sabemos se estamos de lucto carregado ou não.

Então o mestre perdeu a cabeça comigo: Não minta, ouviu? Diga a verdade, já lh’o disse!

Fiquei muito tempo calado. De repente, não sei o que me passou pela cabeça que acreditei que o mestre queria effectivamente que lhe dissesse a verdade. E, creança como era, puz todo o pezo do corpo em cima das pontas dos pés, e com o coração á solta confessei a verdade: Mestre! Antes de chegar á Escola há uma casa que vende bonecas. Na montra estava uma boneca vestida de côr-de-rosa! A boneca tinha a pele de cêra. Como as meninas! A boneca tinha olhos de vidro. Como as meninas! A boneca tinha tranças cahidas. Como as meninas! A boneca tinha dedos finos. Como as meninas! Mestre! A boneca tinha os dedos finos...


Almada Negreiros


Nota: Nascido a 7 Abril 1893 em Trindade (S. Tomé e Príncipe) e falecido em Lisboa a 15 Junho 1970, José Sobral de Almada Negreiros trabalhou em vários campos artísticos. Essencialmente autodidacta, acabou por ter papel importante no modernismo em Portugal. Esteve, com Pessoa e Sá Carneiro, ligado ao grupo da revista Orpheu. Era filho de um tenente de cavalaria de Aljustrel, nomeado administrador do concelho de S. Tomé, e de uma mestiça oriunda de família abastada. Com 7 anos, o pai é nomeado encarregado do Pavilhão das Colónias na Exposição Universal de Paris, e assim ele e o irmão vêm estudar para o Colégio Jesuíta de Campolide em Lisboa. Três anos após a implantação da República, já com 20 anos, expõe os seus primeiros desenhos e conhece Fernando Pessoa. Participa na II Exposição dos Humoristas Portugueses, começa a ilustrar jornais e torna-se director artístico do jornal monárquico Papagaio Real. Em 1915 publica o famoso Manifesto Anti-Dantas e colabora no Orpheu. Um ano depois, com 23 anos, publica o manifesto de apoio à I Exposição de Amadeo de Souza-Cardoso, tornando-se num dos primeiros defensores da sua obra. O seu convívio com Santa-Rita Pintor é determinante para impulsionar o futurismo em Portugal. Tanto Amadeo como Santa-Rita viriam a falecer em 1918, e Almada parte para Paris, onde tem empregos de sobrevivência. Regressa com 27 anos, em 1920, e continua a expor e a escrever, colaborar com jornais, além de fazer obras para a Brasileira e se ter dedicado ao famoso estudo dos Painéis de S. Vicente. Em 1927 parte para Madrid, e só regressa em 1932, já com 39 anos. Inicialmente enérgico, polémico e truculento, começa a assumir uma nova atitude. De convicções monárquicas, aproxima-se do nascente Estado Novo, mas mantendo sempre a sua independência. Em 1934 casa-se com Sarah Afonso, e nasce José, o seu primeiro filho, no ano seguinte. Realiza os primeiros estudos para os vitrais da Igreja da Senhora de Fátima (Lisboa) e inicia colaboração com o arquiteto Pardal Monteiro, que viria a resultar no edifício do Diário de Notícias. Dedica-se a várias actividades: pinturas, desenhos, ilustrações, poesias, ensaios, romances, conferências, palestras, frescos, vitrais, etc. Em 1941, com 47 anos, o órgão de propaganda do regime (SPN - Secretariado de Propaganda Nacional), organiza a exposição Almada – Trinta Anos de Desenho, e aumenta a percepção pública da sua obra. Na década que se segue ganha prémios e projecta cenários para óperas e murais e vitrais para as Gares Marítimas de Alcãntara e da Rocha do Conde de Óbidos, bem como painéis para edifícios da Cidade Universitária de Lisboa. Consagrado, em 1969 realiza o painel Começar para o átrio da Fundação Calouste Gulbenkian. Faleceu com 77 anos, no mesmo quarto de hospital onde falecera Fernando Pessoa.

19 setembro 2016

O ALBATROZ

Souvent, pour s'amuser, les hommes d'équipage
Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage,
Le navire glissant sur les gouffres amers.

À peine les ont-ils déposés sur les planches,
Que ces rois de l'azur, maladroits et honteux,
Laissent piteusement leurs grandes ailes blanches
Comme des avirons traîner à côté d'eux.

Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule!
Lui, naguère si beau, qu'il est comique et laid!
L'un agace son bec avec un brûle-gueule,
L'autre mime, en boitant, l'infirme qui volait!

Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l'archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l'empêchent de marcher.


Charles Baudelaire

 
Nota: Nascido em Paris a 9 Abril 1821 e falecido na mesma cidade com 46 anos (31 Agosto 1867), Baudelaire foi um dos precursores do simbolismo e, a par de Walt Whitman é hoje reconhecido como um dos iniciadores da poesia moderna. Fez os estudos liceais na mesma cidade e com 19 anos, para corrigir a sua vida desregrada, o padrasto mandou-o para a Índia, mas acabou por ficar pela ilha da Reunião. Regressado a Paris, continuou a levar uma vida de álcool e droga com a sua companheira a actriz e dançarina haitiana Jeanne Duval. Pela intervenção da mãe num tribunal, a herança do seu pai passa a ser-lhe controlada por um notário. Em 1857, com 36 anos, lança "As Flores do Mal". Acusado de ultraje à moral pública, os exemplares são apreendidos. Corrigindo os 6 poemas que causavam polémica, tenta ingressar na Academia Francesa. Numa visita à Bélgica, tinha conhecido Félicien Rops, ilustrador do seu livro. Na visita a uma igreja em Namur, Baudelaire perde a consciência e sofre alterações cerebrais (afasia, perturbação na compreensão e formulação da linguagem). Chega a ter uma das metades do corpo paralisada. Morreu de sífilis, muito antes de ser famoso. Deixo aqui a tradução do poema acima da autoria de Delfim Guimarães:

Às vezes no alto mar, distrai-se a marinhagem
Na caça do albatroz, ave enorme e voraz,
Que segue pelo azul a embarcação em viagem,
Num vôo triunfal, numa carreira audaz. 


Mas quando o albatroz se vê preso, estendido

Nas tábuas do convés, — pobre rei destronado!

Que pena que ele faz, humilde e constrangido,

As asas imperiais caídas para o lado! 

Dominador do espaço, eis perdido o seu nimbo!

Era grande e gentil, ei-lo o grotesco verme!...

Chega-lhe um ao bico o fogo do cachimbo,

Mutila um outro a pata ao voador inerme. 

O Poeta é semelhante a essa águia marinha

Que desdenha da seta, e afronta os vendavais;

Exilado na terra, entre a plebe escarninha,

Não o deixam andar as asas colossais! 

16 setembro 2016

POEMA DE AMOR


Tambien, como la tierra
yo pertenezco a todos.
no hay una sola gota
de odio en mi pecho. Abiertas van mis manos

esparciendo las uvas en el viento

(Pablo Neruda)


quando eu voltar a ver a luz do sol que me negam 
amor
iremos
de paz vestidos
entretecer um sorriso de flores e frutos 

abraçados
por caminhos-serpentes ágeis
trepando dos montes às estrelas
e aos sonhos cintilantes
iremos


cantando também, cantando
todas as canções que sabemos e não sabemos.

quando eu voltar a ver a luz do sol que me negam 
amor
iremos
pois iremos breves chorar
nas sepulturas sem fim 

dos homens sem fim que partiram assim
sem óbito nem combaditocua


sem esperança da luz do sol que nos negam

iremos, amor
dizer-lhes
voltei 

e voltamos
porque nos amamos
e amamos
as sepulturas sem fim dos homens sem fim.


quando eu voltar a ver a luz do sol que me negam 
lábaros erguidos:
- a liberdade é fruto da colheita - 
amor
iremos
colher maçarocas e cores
aos mortos ofertar ressurreição e flores

aos vivos a pujança da nossa vida 
amor
iremos
desenhar no papel celeste um arco-íris 

para nosso filho brincar:
chuva vem chuva vai

senhora da conceição 
chuva pra lavra do pai
manda sol não

iremos, sim, amor iremos 
quando eu voltar
- as grilhetas desfeitas - 
e cingidos faremos
a vida irrefragável medrar
na dádiva serena das colheitas
no pipilar dos pássaros maravilhados
no caminhar dos homens regressados 

nos hossanas das chuvas na terra renascida 
nos confiantes passos da gente decidida 
amor.

vestirá a terra fímbria de nova cor 
de beijos e sorrisos a vida teceremos 
e entre algodoais sem fim
e batuques de alacre festim


iremos 
amor.


António Jacinto

09 setembro 2016

ACTO DE CONTRIÇÃO


Maldição...
Pareço incapaz de atender
a todos os meus  compromissos,
e sinto-me frustrado
por não poder proceder
ao milagre da minha multiplicação.
Acabei de fazer a habitual justificação,
perante um amigo, ao telefone.
Maldição!
Maldição para tamanha fome,
sendo a minha barriga tão pequena...
Infelizmente, pareço incapaz
de manter a minha tão prezada coerência.
Paciência...
Devo admitir que, entre mim
e o resto do mundo
não há, afinal, diferença de maior a assinalar.
E enfim, onde outros falham,
também eu, por força, acabo por falhar...!


Luis Beirão

Nota: publicado em Abril de 2003, quando ele era outro, no livro "Um Outro Olhar" (Corpos Editora). 

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