Eu tinha chegado tarde á escola. O mestre quiz, por força, saber porquê. E eu tive de dizer: Mestre! Quando sahi de casa tomei um carro para vir mais depressa mas, por infelicidade, deante do carro cahiu um cavalo com um ataque que durou muito tempo.
O mestre zangou-se comigo: Não minta! Diga a verdade!
E eu tive de dizer: Mestre! Quando sahi de casa... minha mãe tinha um irmão no extrangeiro e, por infelicidade, morreu hontem de repente e nós ficámos de lucto carregado.
O mestre ainda se zangou mais comigo: Não minta! Diga a verdade!!
E eu tive de dizer: Mestre! Quando sahi de casa... estava a pensar no irmão de minha mãe que está no estrangeiro há tantos annos sem escrever. Ora isto ainda é peor do que se elle tivesse morrido de repente porque nós não sabemos se estamos de lucto carregado ou não.
Então o mestre perdeu a cabeça comigo: Não minta, ouviu? Diga a verdade, já lh’o disse!
Fiquei muito tempo calado. De repente, não sei o que me passou pela cabeça que acreditei que o mestre queria effectivamente que lhe dissesse a verdade. E, creança como era, puz todo o pezo do corpo em cima das pontas dos pés, e com o coração á solta confessei a verdade: Mestre! Antes de chegar á Escola há uma casa que vende bonecas. Na montra estava uma boneca vestida de côr-de-rosa! A boneca tinha a pele de cêra. Como as meninas! A boneca tinha olhos de vidro. Como as meninas! A boneca tinha tranças cahidas. Como as meninas! A boneca tinha dedos finos. Como as meninas! Mestre! A boneca tinha os dedos finos...
Almada Negreiros
Nota: Nascido
a 7 Abril 1893 em Trindade (S. Tomé e Príncipe) e falecido em
Lisboa a 15 Junho 1970, José Sobral de Almada Negreiros trabalhou em
vários campos artísticos. Essencialmente autodidacta, acabou por
ter papel importante no modernismo em Portugal. Esteve, com Pessoa e
Sá Carneiro, ligado ao grupo da revista Orpheu.
Era filho de um tenente de cavalaria de Aljustrel, nomeado
administrador do concelho de S. Tomé, e de uma mestiça oriunda de
família abastada. Com 7 anos, o pai é nomeado encarregado do
Pavilhão das Colónias na Exposição Universal de Paris, e assim
ele e o irmão vêm estudar para o Colégio Jesuíta de Campolide em
Lisboa. Três anos após a implantação da República, já com
20 anos, expõe os seus primeiros desenhos e conhece Fernando
Pessoa. Participa na II Exposição dos Humoristas Portugueses,
começa a ilustrar jornais e torna-se director artístico do jornal
monárquico Papagaio Real.
Em 1915 publica o famoso Manifesto
Anti-Dantas
e colabora no Orpheu.
Um ano depois, com 23 anos, publica
o manifesto de apoio à I
Exposição de Amadeo de Souza-Cardoso, tornando-se num
dos primeiros defensores da sua obra. O seu convívio com Santa-Rita
Pintor é determinante para impulsionar o futurismo em Portugal.
Tanto Amadeo como Santa-Rita viriam a falecer em 1918, e Almada parte
para Paris, onde tem empregos de sobrevivência. Regressa com 27
anos, em 1920, e continua a expor e a escrever, colaborar com
jornais, além de fazer obras para a Brasileira
e se ter dedicado ao famoso estudo dos Painéis
de S. Vicente.
Em 1927 parte para Madrid, e só regressa em 1932, já com 39
anos. Inicialmente enérgico, polémico e truculento, começa a
assumir uma nova atitude. De convicções monárquicas, aproxima-se
do nascente Estado Novo, mas mantendo sempre a sua
independência. Em 1934 casa-se com Sarah Afonso, e nasce José, o
seu primeiro filho, no ano seguinte. Realiza os primeiros estudos
para os vitrais da Igreja da Senhora de Fátima (Lisboa) e
inicia colaboração com o arquiteto Pardal Monteiro, que viria a
resultar no edifício do Diário de Notícias. Dedica-se a várias actividades: pinturas, desenhos, ilustrações,
poesias, ensaios, romances, conferências, palestras, frescos, vitrais, etc. Em 1941, com 47 anos, o órgão de propaganda do
regime (SPN - Secretariado de Propaganda Nacional), organiza a
exposição Almada –
Trinta Anos de Desenho,
e aumenta a percepção pública da sua obra. Na década que se segue
ganha prémios e projecta cenários para óperas e murais e vitrais
para as Gares Marítimas de Alcãntara e da Rocha do Conde de Óbidos,
bem como painéis para edifícios da Cidade Universitária
de Lisboa. Consagrado, em 1969 realiza o painel Começar
para o átrio da Fundação
Calouste Gulbenkian. Faleceu com 77 anos, no mesmo quarto de
hospital onde falecera Fernando Pessoa.