30 setembro 2007

ANJO ÉS


Anjo és tu, que esse poder
Jamais o teve mulher,
Jamais o há-de ter em mim.
Anjo és, que me domina
Teu ser o meu ser sem fim;
Minha razão insolente
Ao teu capricho se inclina,
E minha alma forte, ardente,
Que nenhum jugo respeita,
Covardemente sujeita
Anda humilde a teu poder.
Anjo és tu, não és mulher.

Anjo és. Mas que anjo és tu?
Em tua fronte anuviada
Não vejo a c´roa nevada
Das alvas rosas do céu.
Em teu seio ardente e nu
Não vejo ondear o véu
Com que o sôfrego pudor
Vela os mistérios d´amor.
Teus olhos têm negra a cor,
Cor de noite sem estrela;
A é chama vivaz e é bela,
Mas luz não têm. - Que anjo és tu?
Em nome de quem vieste?
Paz ou guerra me trouxeste
De Jeová ou Belzebu?

Não respondes - e em teus braços
Com frenéticos abraços
Me tens apertado, estreito!...
Isto que me cai no peito
Que foi?... - Lágrimas? - Escaldou-me...
Queima, abrasa, ulcera...Dou-me,
Dou-me a ti, anjo maldito,
Que este ardor que me devora
É já fogo de precito,
Fogo eterno, que em má hora
Trouxeste de lá... De onde?
Em que mistérios se esconde
Teu fatal, estranho ser!
Anjo és tu ou és mulher?


Almeida Garrett

E quem disse que poemas mais antigos não continuam, ainda, belos ?

28 setembro 2007

EVENTOS AMANHÃ (SÁBADO)

1 - "CONSTRUÇÃO"

Local: Casa Sindical, Porto (perto da estação de Campanhã), pelas 21 horas

Sessão de poesia e música semi-teatralizada, em torno do poema "Operário em Construção", de Vinicius de Morais. Adaptação de uma colagem de textos de Anthero Monteiro. Poemas e músicas de Ary dos Santos, Chico Buarque, Álvaro Feijó, Bertold Brecht, António Aleixo, Manuel Alegre, Zeca Afonso, entre outros.

Além da minha participação, conta ainda com Alexandra Mota, Amílcar Mendes, Carlos Jorge, Diana Devezas, Ana Ribeiro (voz e guitarra) e Carlos Andrade (voz e guitarra acústica). Espectáculo integrado na comemoração do 37º aniversário da CGTP-IN (Intersindical), mas aberto ao público em geral (entrada livre).

2- Apresentação do livro "Versos Nus", de Tiago Nené

Local: Magnolia caffé da Praça de Londres (Lisboa), 16 horas. Por sugestão de um amigo, autor do livro, deixo aqui a indicação, a quem puder ou estiver interessado em comparecer. Capa da famosa fotógrafa Paula Rosa e participação do grupo de teatro da Faculdade de Psicologia Univ. Lisboa.

3 - Apresentação do livro "No limiar das palavras", de Manuela Fonseca

Local: Biblioteca Municipal da Amadora (Rua Capitão Plácido de Abreu, Venteira) Tambem por sugestão de uma amiga. Prefácio de Rosa Maria Anselmo, apresentação a cargo de vera Silva.

4 - Apresentação do livro "Quadrar", de Fernando Morais

Local: Biblioteca Municipal de Gaia, 16 horas Livro da autoria de um amigo, que reúne textos que seleccionou de pessoas que foi conhecendo ao longo do seu trajecto.

ANIVERSÁRIO


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...


Álvaro de Campos

27 setembro 2007

SER POETA


Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!


Florbela Espanca

Embora este poema seja mais do que conhecido, e citá-lo é quase o cliché dos clichés, nem por isso é menos bonito. E pronto, apeteceu-me...


20 setembro 2007

LUGAR NENHUM



Chamaste-me
e eu chamei-te.
Encontrámo-nos os dois,
na meia-luz
e à meia-distância,
no ponto onde a luz não era luz
e as trevas não eram trevas,
mas tudo era luztrevas,
no ponto onde nada era tudo
e tudo era nada,
e não havia tudo nem nada.
No ponto enfim,
onde eu não era eu
e tu não eras tu,
mas eu era tu
e tu eras eu...

Ali ficámos, suspensos no tempo,
em sublime e mútua adoração.
Chegado a este ponto,
contar-vos- ia, talvez, a minha história,
acaso houvesse história
para contar.
Mas é difícil existir história
quando não há princípio nem fim,
e quando o fim é o princípio
e o princípio é o fim
e entre ambos, princípio e fim,
nada mais existe senão o
fim e o princípio deles próprios...
Na verdade, nunca existimos,
ali naquele lugar sem nome,
até ao momento em que, cruelmente,
fomos arrastados de volta a nós mesmos.
Saímos. Saí.
E de fora, não vislumbrava mais
a porta de entrada,
nem conseguia situar o local,
recuperados que estavam os meus conceitos geográficos.
Conclui, pois, que o local não cabia
na Geografia...
Tentei depois, uma vez mais, regressar,
até acabar por entender
que não era a mim que cabia
a escolha do tempo ou do lugar,
mas eram eles que me escolhiam.
Vinham, sem anúncio prévio
ou aviso preparatório,
envolver-me nos seus braços.
Geralmente quando,
incauto e descuidado,
me tivesse esquecido

da imensidade das coisas
que não controlo...



Luis Beirão

17 setembro 2007

POMBAS NO MINISTÉRIO DA DEFESA

Evento: Quartas MalDitas - Pombas no Ministério da Defesa
Data: Quarta, dia 19, pelas 22 horas
Local: Clube Literário do Porto (entre o Infante e a Alfândega) http://www.clubeliterariodoporto.co.pt
Entrada livre, paga-se apenas o consumo - quem aparecer será bem vindo.

Semi-teatralização de uma colagem de textos e músicas sobre guerra e paz. Textos e músicas de autores diversos (Carlos Pinhão, Casais Monteiro, Prévert, Pessoa, Gedeão, Stephen Crane, Zeca Afonso, Pablo Neruda, e muitos mais).
Colagem da responsabilidade de Anthero Monteiro, com a participação do colectivo das Quartas MalDitas (Ana Afonso, Anthero Monteiro, António Pinheiro, Joana Padrão, Luis Carvalho, Mário Vale Lima, Rafael Tormenta e um convidado: Carlos Jorge) e ainda Carlos Andrade (guitarra e voz).

12 setembro 2007

OS POETAS


Nunca os vistes,
Sentados nos cafés que há na cidade,
Um livro aberto sobre a mesa e tristes,
Incógnitos, sem oiro e sem idade?


Com magros dedos, coroando a fronte,
Sugerem o nostálgico sentido
De quem rasgasse um pouco de horizonte
Proibido...


Fingem de reis da Terra e do Oceano
(E filhos são legítimos do vício!)
Tudo o que neles nos pareça humano
É fogo de artifício.


Por vezes fecham-lhes as portas
- Ódio que a nada se resume -
Voltam depois, a horas mortas,
Sem um queixume.


E mostram sempre novos laivos
De poesia em seu olhar...


Adolescentes! Afastai-vos
Quando algum deles vos fitar!



Pedro Homem de Mello

02 setembro 2007

GINSBERG MORREU



Caos desordem tumulto
geometrizados pela polícia
vigiando as plaquetas sanguíneas do hábito
assim a vida se consente
para uma técnica de precário existir
não para o mergulho no vulcão

sabe-se aliás que o vulcão
não rumina aquela chama definitiva
da lenda de Empédocles
vulcão anestesiado em realidade virtual
é o que nos pode oferecer
este tempo de camélias nado-murchas

clamámos em tempos recentes
por "mais luz" pensando auferi-la
sem que dela o gerador não fosse
o dom conseguido em assumida melancolia
ousámos alegria sem espaço próprio
e lográmos dela o simulacro fantasmático

vulcão estropiado
destroços de terra gretada de vazio
mas vazio sem a paixão do seu eco desdobrado
o "horror económico" alguém escreve
apenas a mãe-pelicano arrancando ao peito próprio
o alimento derradeiro para os filhos

já não podemos soltar o "uivo"
lobos criados em cativeiro
e postos à deriva na floresta
de turistas incêndios e outras devastações
lobos perdidos sem referências
nem códigos de antiga altivez solitária

no fim de contas esse "uivo"
nunca passou de ténue miar
de gatos familiares
hoje ronronam uns velhos e lustrosos nos sofás
outros conformados estão com o rato como presa trivial
o maior número enganou-se no beco e não voltou....

Levi Condinho

Nota: Talvez dos poucos poetas portugueses na senda da tradição beatnik (beat generation). A sua escrita está cheia de alusões ao jazz e à música clássica. Nasceu em Alcobaça em 1941 e foi para Lisboa em 1972. Foi jornalista, cronista, empregado bancário (hoje na na reforma) e tradutor. Este poema foi-me indicado pelo poeta, por contraponto a um outro seu mais antigo que aprecio e que oportunamente publicarei aqui.

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