18 setembro 2008

OBRA-PRIMA


Quando a tua mão acaricia a minha perna
os sensores da pele desencadeiam reacções sentimentais
e às vezes chego a ter uma reacção motora.
O ângulo da perna, a inclinação do pé –
maravilhas-te com a paisagem ocasional:
depois da curva da estrada
estabilizas o olhar na curva do joelho.
Os olhos impacientam-se em sacudidelas invisíveis
mas o espelho reflecte apenas imobilidade.
A sandália: o teu olhar vai do joelho à nudez do pé.
Este pé que calcorreia as ruas é também objecto de desejo:
Este pé que calca o travão a fundo.
Sei que vais beijar-me – talvez nem tu saibas
que a postura do teu corpo tem o formato de beijo.
A carícia necessita de um encontro minucioso,
da pressão exacta para que não me esmagues a rótula.
O contacto é doce na pele que te ofereço,
a carícia é a obra-prima da engenharia mecânica.
Olho a baía onde se reflectem os néons da noite
e deixo o corpo trabalhar à vontade.
Depois adormeço com a tua mão na minha perna
e a vaga consciência de que o paraíso se estende
da ponta dos pés até ao cimo da cabeça.


Rosa Alice Branco
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Sobre a autora: nasceu em Aveiro (1950). Doutorada em Filosofia, é professora na Escola Superior de Artes e Design de Matosinhos e investigadora no Departamento de Comunicação e Arte na Universidade de Aveiro. Tem 8 livros de poesia publicados em Portugal, incluindo a sua obra reunida: Soletrar o Dia. Já foi publicada em diversas línguas. Nota: Separações e negritos da minha responsabilidade, para facilitar a leitura. Consultar sempre o original.

10 setembro 2008

ODE À NOITE (INTEIRA)


Gosto do momento, exacto ou nem por isso,
em que se torna possível colar cartazes
nas paredes ao lado dos meus ombros (espero
o autocarro, vejo devagar, sorrio). Mas
gosto, sobretudo, dos cães quase sem dono
que roçam as esquinas, pisando restos de garrafas
– ou das pessoas que desconheço
e das bebidas todas que ignoro
(porque me matam menos e se chamam
– como eu – insónia, pesadelo, golpe baixo).
Existem, claro, raparigas louras um tanto
heterodoxas que não te apetece beijar
(a forca do bâton, perfeita – o cigarro aceso
pedindo outro lume). Essas mesmas que hão-de
um dia procriar com zelo, evitando rugas,
tumores e o mundo como representação misógina.
Mais lírica, sem dúvida, é a lavagem das ruas,
com a cerveja a premiar a farda
demasiado verde e os bigodes de serviço.
Outros, alguns, tornam concreto o torpor
de um charro e pedem-te em crioulo básico
um cigarro português que tu vais dar,
sem esforço nem palavras. Entre shots, piercings,
t-shirts de Guevara e gel, podes não acreditar
por algumas horas no axioma frágil do teu corpo.
Esfumas-te, como eles, no espelho de um bar
qualquer, país de enganos e baratas. E
quase gostas disso, quase: a música de punhais,
servil, um certo e procurado desencontro.
Um táxi te ensinará depois o caminho de casa
– ou o seu contrário, pois só ali (anónimo .
e desfocado) eras finalmente tu, ou podias ser.

O resto, a vida, fica para outra vez.


Manuel de Freitas
Foto: Joana França, Brasília (Brasil)
.
Nota: Separação final e negrito da minha responsabilidade, para facilitar a leitura. Aconselha-se consulta do original.
Nota sobre o autor: Nasceu em 1972 (35 anos), no Vale de Santarém. Vive desde 1990 em Lisboa, trabalhando como tradutor, crítico literário e editor. É co-director da revista Telhados de Vidro. Publicou vários livros de poesia, e ensaios sobre literatura portuguesa. Foi responsável (2002) pela organização da antologia Poetas sem Qualidades (Averno). Em 2006 foi-lhe atribuído o Prémio Literário Ruy Belo da Câmara Municipal de Sintra.

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