19 outubro 2015

O HORIZONTE DAS PALAVRAS



Sem direcção, sem caminho
escrevo esta página que não tem alma dentro.
Se conseguir chegar à substância de um muro
acenderei a lâmpada de pedra na montanha.
E sem apoio penetro nos interstícios fugidios
ou enuncio as simples reiterações da terra,
as palavras que se tornam calhaus na boca ou nos meus passos.
Tentarei construir a consistência num adágio
de sílabas silvestres, de ribeiros vibrantes.
E na substância entra a mão, o balbucio branco
de uma língua espessa, a madeira, as abelhas,
um organismo verde aberto sobre o mar,
as teclas do verão, as indústrias da água.
Eu sou agora o que a linguagem mostra
nas suas verdes estratégias, nas suas pontes
de música visual: o equilíbrio preenche os buracos
com arcos, colinas e com árvores.
Um alvor nasceu nas palavras e nos montes.
O impronunciável é o horizonte do que é dito.





António Ramos Rosa
Imagem: Shtambaker 

Sobre o poeta:
Poeta, tradutor e desenhador português, nascido em Faro em 1924 e falecido em Lisboa, com 88 anos, em 2013. Estudou em Faro, não tendo sequer concluído o secundário. Em 1951, foi um dos fundadores da revista de poesia "Árvore". Trabalhou como empregado de escritório. Em 1945 vai para Lisboa e dois anos depois volta a Faro, tendo integrado as fileiras do M.U.D. Juvenil, onde militou. Regressado a Lisboa, foi professor de Português, Francês e Inglês, ao mesmo tempo que estava empregado numa firma comercial, e começou a fazer traduções, trabalho que nunca mais abandonaria até ao fim da vida e que o relacionou com um grupo de escritores que o incentivaram na publicação dos seus poemas. Em 1958 publica os primeiros poemas num jornal de Loulé e o seu primeiro livro, numa colecção dirigida pelo seu amigo e poeta Casimiro de Brito. Conseguiu mais tarde abandonar o trabalho no escritório e dedicar-se apenas à escrita e tradução. Venceu vários prémios, em Portugal e no estrangeiro, um deles (recusado) logo em 1971, da então Secretaria de Estado da Informação. Colaborou em várias revistas e jornais e publicou quase 5 dezenas de títulos, o último dos quais no ano em que faleeu. Em 1992 e 97 seria agraciado com duas ordens honoríficas portuguesas.

14 outubro 2015

AUSÊNCIA


 Nas horas do poente,
Os bronzes sonolentos,
- pastores das ascéticas planuras –
Lançam este pregão ao soluçar dos ventos,
À nuvem erradia,
Às penhas duras:
- Que é dele, o eterno Ausente,
- Cantor da nossa melancolia?


Nas tardes duma luz de íntimo fogo, 
Rescendentes de tudo o que passou,
Eu próprio me interrogo:
- Onde estou? Onde estou?
E procuro nas sombras enganosas
Os fumos do meu sonho derradeiro!

- Ventos, que novas me trazeis das rosas,
Que acendiam clarões no meu jardim?

- Pastores, que é do vosso companheiro?

- Saudades minhas, que sabeis de mim?

 
Mário Beirão
Foto: Luis Beirão 
Poeta nascido em Beja em 1890 e falecido em Lisboa em 1965 (75 anos). Poeta saudosista e nostálgico, foi um dos colaboradores da revista Águia (à qual esteve ligado Teixeira de Pascoaes). A revista fazia parte do movimento da Renascença Portuguesa, nascido no Porto em 1912, com o objectivo patriótico de renovar, dar conteúdo e fundamentar intelectualmente o movimento republicano, uma vez que a I República foi implementada em Portugal em 1910. Inicialmente a Renascença tinha um espírito abrangente, e conviviam na Renascença autores das mais diversas sensibilidades artísticas e políticas. Apesar disso, as saídas sucederam-se: Pessoa e Sá Carneiro para fundarem a Orpheu, António Sérgio mais tarde, entre muitos outros, afastaram-se do grupo. Mário Beirão tornou-se, a nível político, um dos apoiantes da ditadura salazarista do Estado Novo, e ficou conhecido por ter escrito o Hino da Mocidade Portuguesa. Apesar de tudo, vale a pena rever a sua poesia.
 



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