26 março 2008

DESLUMBRAMENTOS

Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.


Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!…


Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!


Ah! Como me estonteia e me fascina…
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!…


Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!


O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!


Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.


E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como a um brilhante.


Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.


E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!



Cesário Verde

Nota: Desta vez, um poema ligeirinho... ou não.
Cesário Verde tinha este dom, para de forma aparentemente ligeira, cómica muitas vezes, inclusivé satirizando-se a si mesmo, abordar de forma irónica e corrosiva certas questões.

20 março 2008

CONHEÇO O SAL

.
Conheço o sal da tua pele seca
depois que o estio se volveu Inverno
da carne repousando em suor nocturno.
.
Conheço o sal do leite que bebemos
quando das bocas se estreitavam lábios
e o coração no sexo palpitava.
.
Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam
neste dormir de brilhos azulados.
.
Conheço o sal que resta em minhas mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.
.
Conheço o sal da tua boca, o sal
da tua língua, o sal de teus mamilos,
e o da cintura se encurvando de ancas.
.
A todo o sal conheço que é só teu,
ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados.
.
Jorge de Sena
.
Nota: Mais um poema belíssimo cujo conhecimento, tal como o anterior, devo a indicação de alguém. É bom ter pessoas a quem queremos bem, e que podem e sabem mostrar-nos coisas lindas. São essas pequenas coisas que também contribuem para a nossa felicidade.
Fotografia: Ulrika Bengtsson, Umea (Suécia)

19 março 2008

QUARTAS MALDITAS - A ÁRVORE DOS POEMAS

Hoje, dia 19 Quarta-Feira, pelas 22 h, no Clube Literário do Porto.

Livros. Poemas. Leituras. Conversas. Entrevistas. Participação do público. Pretextos de aprendizagem. Desta vez, à volta do tema da árvore e da natureza.

Coordenação: Anthero Monteiro
Leituras: António Pinheiro, Diana Devezas, Gilberto Pereira, Joana Padrão, Luís Carvalho, Mário Vale Lima, Rafael Tormenta.
Convidados: Jorge de Sousa Braga (poeta), Cecília Moreira e Carlos Dias.

Apareçam, se puderem.

Para mais informações, clicar aqui

10 março 2008

QUERO-TE



Disse-to com o vento,
Brincando como cachorrinho na areia
Ou irado como órgão impetuoso;

Disse-to com o sol,
Que doura desnudados corpos juvenis
E sorri em todas as coisas inocentes;

Disse-to com as nuvens,
Frentes melancólicas que sustêm o céu,
Tristezas fugitivas;

Disse-to com as plantas,
Leves criaturas transparentes
Que se cobrem de repentino rubor;

Disse-to com a água,
Vida luminosa que vela um fundo de sombra;
Disse-to com o medo,
Disse-to com a alegria,
Com o fastio, com as terríveis palavras.

Mas assim não me basta:
Muito para além da vida,
Quero dizer-to com a morte;
Muito para além do amor,
Quero dizer-to com...
o esquecimento.


Luis Cernuda

Nota: Poeta nascido em 1902 em Sevilha, onde começou a estudar Direito em 1919. Ao ter contacto com a literatura, muda-se para Madrid, onde fez parte da famosa "Geração de 27". Justamente em 1927, publica o seu primeiro livro. Trabalhou como leitor de espanhol na Universidade de Toulouse (França). Recebeu com entusiasmo a proclamação da República em Espanha e participou activamente nas "trincheiras culturais anti-fascisctas" da Guerra Civil, ao lado de poetas como Rafael Alberti ou Gil Albert. Em 1938 viajou para Inglaterra, iniciando o seu exílio. Em 1947 foi dar aulas na universidade americana de Mount Holyok, e em 1952 mudou-se para o México, onde viria a falecer em 1963. Para os mais curiosos, aqui fica o espanhol, no original:

Te quiero.

Te lo he dicho con el viento,
jugueteando como animalillo en la arena
o iracundo como órgano impetuoso;

Te lo he dicho con el sol,
que dora desnudos cuerpos juveniles
y sonríe en todas las cosas inocentes;

Te lo he dicho con las nubes,
frentes melancólicas que sostienen el cielo,
tristezas fugitivas;

Te lo he dicho con las plantas,
leves criaturas transparentes
que se cubren de rubor repentino;

Te lo he dicho con el agua,
vida luminosa que vela un fondo de sombra;
te lo he dicho con el miedo,
te lo he dicho con la alegría,
con el hastío, con las terribles palabras.

Pero así no me basta:
más allá de la vida,
quiero decírtelo con la muerte;
más allá del amor,
quiero decírtelo con el olvido.

03 março 2008

OS VERSOS QUE TE FIZ



Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem p'ra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim p'ra te oferecer.

Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos p'ra te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!

Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!


Florbela Espanca

Nota: A imagem é a célebre fotografia de Robert Doisneau "Le Baisier de L'Hôtel de Ville", Paris, 1950. Esta imagem foi imortalizada e perpetuada depois como poster e ícone romântico, embora na altura, inserida num trabalho para a revista "Life" ninguém lhe tenha ligado, e tenha ficado esquecida. Ironicamente e apesar daquilo que aparenta, a imagem não foi espontânea, mas sim um casal que se dispôs a posar de acordo com indicações do fotógrafo.

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