Somos
nós
As
humanas cigarras.
Nós,
Desde
o tempo de Esopo conhecidos...
Nós,
Preguiçosos
insectos perseguidos.
Somos
nós os ridículos comparsas
Da
fábula burguesa da formiga.
Nós,
a tribo faminta de ciganos
Que
se abriga
Ao
luar.
Nós,
que nunca passamos,
A
passar...
Somos
nós, e só nós podemos ter
Asas
sonoras.
Asas
que em certas horas
Palpitam.
Asas
que morrem, mas que ressuscitam
Da
sepultura.
E
que da planura
Da
seara
Erguem
a um campo de maior altura
A
mão que só altura semeara.
Por
isso a vós, Poetas, eu levanto
A
taça fraternal deste meu canto,
E
bebo em vossa honra o doce vinho
Da
amizade e da paz.
Vinho
que não é meu,
Mas
sim do mosto que a beleza traz.
E
vos digo e conjuro que canteis.
Que
sejais menestréis
Duma
gesta de amor universal.
Duma
epopeia que não tenha reis,
Mas
homens de tamanho natural.
Homens
de toda a terra sem fronteiras.
De
todos os feitios e maneiras,
Da
cor que o sol lhes deu à flor da pele.
Crias
de Adão e Eva verdadeiras.
Homens
da torre de Babel.
Homens
do dia-a-dia
Que
levantem paredes de ilusão.
Homens
de pés no chão,
Que
se calcem de sonho e de poesia
Pela
graça infantil da vossa mão.
Miguel Torga
Nota:
Pseudónimo de Adolfo
Correia da Rocha, nascido em S. Martinho de Anta (Sabrosa) a 12 de
Agosto 1907 e falecido a 17 de Janeiro 1995 (87 anos). Foi um dos
mais influentes poetas e escritores portugueses do sec. XX, tendo
recebido o Prémio Camões em 1989. Oriundo de família humilde, aos
10 anos foi servir como criado para uma casa apalaçada do Porto e um
ano depois frequentou o seminário em Lamego. Com 13 anos, em 1920
foi para o Brasil trabalhar na
fazenda de café do tio, em Minas Gerais.
Ao fim de quatro anos, o tio
apercebe-se da sua inteligência e patrocina-lhe os estudos liceais
em Leopoldina. Em 1925 (18 anos), convicto de que ele viria a ser
doutor, o tio propôs-se pagar-lhe os estudos em Coimbra como
recompensa dos cinco anos de serviço.
Em 1928 (21 anos), entra para a Faculdade de Medicina e publica o seu
primeiro livro de poemas. Um ano depois,
deu início à colaboração na Presença, revista fundada por José
Régio, Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, grande impulsionadora
do movimento modernista em Portugal. Em 1930 (23 anos), rompe com a
revista, por «razões
de discordância estética e razões de liberdade humana»,
assumindo uma posição independente. A sua obra traduz a sua
rebeldia contra as injustiças e o inconformismo diante dos abusos de
poder. Reflecte sua origem aldeã, a experiência médica, em
contacto com a gente pobre, e ainda os cinco anos que passou no
Brasil. Chegou a ser preso em 1940 (33 anos) por críticas ao
franquismo. Crítico da praxe e tradições académicas, chama
«farda»
à capa e batina. Em Leiria exerce a sua profissão de médico,
entre 1939 e 1942. Casou-se com Andr´é Crabbé em 1940, uma
estudante belga aluna de Estudos Portugueses em Bruxelas (pupila de
Vitorino Nemésio), que viera a Portugal fazer um curso de Verão. A
sua filha, Clara Rocha, nascida a 3 de Outubro de 1955, casou-se e
divorciou-se mais tarde de Vasco Graça Moura. Sofrendo
de cancro, publicou o seu último trabalho, em 1993, vindo a falecer
em Janeiro de 1995. A sua campa rasa na
aldeia de S. Martinho de Anta, tem uma torga (planta de montanha)
plantada a seu lado.