22 dezembro 2008

DIA DE NATAL


Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros— coitadinhos— nos que padecem,
de lhes darmos coragem
para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes
.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(
Vossa Excelência verificou a hora exacta
em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente
um relógio de pulso antimagnético)

Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos
que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal,
de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.

A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra— louvado seja o Senhor!— o que nunca tinha
pensado comprar.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.

Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora
.

Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá!


Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.


Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas
...


António Gedeão

(como sempre, algumas separações de versos e negritos da minha responsabilidade, para cópia completamente fiel consultar sempre o original)

16 dezembro 2008

QUARTAS MALDITAS - NASCER

Amanhã, Quarta, dia 17, 22 h

Mais uma sessão das Quartas MalDitas
Tema: Nascer
(maternidade, infância, Natal)


.
Coordenador/leitor: Anthero Monteiro
Leitores: António Pinheiro, Diana Devezas, Isabel Marcolino, Luís Carvalho, Marta Tormenta, Rafael Tormenta
.
Entrada gratuita.
Para saberem onde fica o Clube, morada e contacto clicar AQUI

10 dezembro 2008

ONDA POÉTICA - NASCER

Amanhã, 11 Dezembro (Quinta), 21.30 h
Sala das sessões da Junta de Freguesia de Espinho

Onda Poética
(sessão nº119)

Subordinada ao tema
Nascer/ Nascer
.
.
..
Música a cargo do grupo de baladas Nostalgia
Para ver morada e contactos da Junta, clicar AQUI
Para ver localização na cidade de Espinho, clicar AQUI
Para ver horários dos comboios a partir do Porto ou Aveiro, clicar AQUI

04 dezembro 2008

NOITES DE INQUIETAÇÃO (POESIA)

Amanhã, dia 05, pelas 21.30 h,
comigo e o grande amigo e músico Carlos Andrade.

A sessão poético-musical terá lugar na sede da AJA - Norte
(Rua do Bonjardim, 631 - 1º dtº tras., em frente à esquina do Big Ben, junto ao JN)
Cilcar aqui para ver onde fica

25 novembro 2008

QUARTAS MALDITAS - CAFÉS DA MINHA PREGUIÇA

Amanhã (dia 26 Novembro), 22 h - Clube Literário do Porto

Mais uma sessão das Quartas MalDitas.
Tema: Cafés da minha preguiça (poesia de café, sobre cafés e afins)
Convidados: Manuel António Pina (poeta); Álvaro Magalhães (poeta); Tomás Magalhães Carneiro (editor da revista UM CAFÉ)


Poemas ditos pelo coordenador (Anthero Monteiro), pelos residentes habituais (António Pinheiro, Isabel Marcolino, Luís Carvalho, Mário Vale Lima, Marta Tormenta, Rafael Tormenta) e ainda por A. Pedro Ribeiro, e pelos convidados.

Como sempre poesia, animação e conversa com entrada gratuita.
Para saberem onde fica o local, morada e contacto telefónico, clicar AQUI

20 novembro 2008

TURISMO


Visitar este país
até à última gota:
O porco e o Porto
A bola e a bolota
O que é como quem diz
itinerar a derrota

Tudo tem lugar no mapa
Paris, Washington, Moscovo
Em Itália vê-se o Papa
Em Lisboa vê-se o povo.

Welcome, Bienvenus,
Salud, Willkommen,
Viva

A sífilis saúda-vos
saúda-vos a estiva
desta carga de heróis
em carne viva

nociva mas barata
vindes matar a sede com uva
beber o sumo de ócio
que nos mata


Desemborcais nos cais
Desembolsais de mais
mas não sabeis
as coisas viscerais
as coisas principais
deste país azul
com mais hotéis do que hospitais
talvez por ser ao sol
talvez por ser ao sul.

Aqui ao pé do mar
bordamos a tristeza

as toalhas de mão
as toalhas de mesa
que levais para casa
Souvenir
deste povo sem pão
que se cose a sorrir.

Aqui ao pé do rio
gememos a saudade

nosso fado submisso
nossa água a correr.
Canção de mal devir
Souvenir Souvenir
deste povo de trégua
que se canta a morrer.

Aqui ao pé do vento
forjamos o lamento

dum país que se vende
a peso nos prospectos

tanto de sol ardente
tanto de cal fervente
e uma nódoa de céu
nos xailes pretos.


Aqui ao pé do fel
gritamos o segredo

do que parece fácil
neste país de luz:

é apenas a fome.
É apenas o medo.
É apenas o sangue.
É apenas o pus.




José Carlos Ary dos Santos
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Fotografia: praia algarvia por Steve Woods (Colchester, Reino Unido)

11 novembro 2008

POESIA - ONDA POÉTICA Nº118

13 Novembro (Quinta), 21.30 h
Sala das sessões da Junta de Freguesia de Espinho


Onda Poética
(sessão nº118)
Subordinada ao tema
Sortilégios da Noite.


Música a cargo do grupo de baladas Nostalgia.

Para ver morada e contactos da Junta, clicar AQUI
Para ver localização na cidade de Espinho,. clicar AQUI
Para ver horários dos comboios para Espinho a partir do Porto ou Aveiro, clicar AQUI
.
Apareçam se puderem. Serão bem recebidos.

03 novembro 2008

PORTUGAL


Portugal
Eu tenho vinte e dois anos
e tu às vezes fazes-me sentir
como se tivesse oitocentos
Que culpa tive eu que D. Sebastião
fosse combater os infiéis ao norte de África
só porque não podia combater a doença
que lhe atacava os órgãos genitais,
e nunca mais voltasse
Quase chego a pensar que é tudo mentira,
que o Infante D. Henrique
foi uma invenção do Walt Disney
e o Nuno Álvares Pereira
uma reles imitação do Príncipe Valente

Portugal
Não imaginas o tesão que sinto
quando ouço o hino nacional
(que os meus egrégios avós me perdoem)
Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo
Anda na consulta externa do Júlio de Matos
Deram-lhe uns electro-choques e está a recuperar
àparte o facto de agora me tentar convencer
que nos espera um futuro de rosas...

Portugal
Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos
a ver se contraía a febre do Império
mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado
Virei a Torre do Tombo do avesso
sem lograr encontrar uma pétala que fosse
das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador

Portugal
Se tivesse dinheiro comprava um Império e dava-to
Juro que era capaz de fazer isso só para te ver sorrir

Portugal
Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém
Sabes
Estou loucamente apaixonado por ti
Pergunto a mim mesmo
Como me pude apaixonar por um velho decrépito e idiota como tu
mas que tem o coração doce
ainda mais doce que os pastéis de Tentúgal
e o corpo cheio de pontos negros
para poder espremer à minha vontade

Portugal
Estás a ouvir-me?
Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete,
Salazar estava no poder
nada de ressentimentos
O meu irmão esteve na guerra, tenho amigos que emigraram
nada de ressentimentos
um dia bebi vinagre
nada de ressentimentos

Portugal
depois de ter salvo inúmeras vezes os Lusíadas a nado
na piscina municipal de Braga
ia agora propor-te um projecto eminentemente nacional
Que fôssemos todos a Ceuta
à procura do olho que Camões lá deixou

Portugal
Sabes de que cor são os meus olhos?
São castanhos como os da minha mãe

Portugal
gostava de te beijar muito
apaixonadamente
na boca...



Jorge de Sousa Braga
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(poeta e tradutor que já tive o prazer de conhecer nas sessões mensais que levamos a cabo às Quartas MalDitas)

20 outubro 2008

POESIA - QUARTAS MALDITAS

Clube Literário do Porto, Quarta (dia 22), pelas 22 h
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Poeta Convidado:
Daniel Maia-Pinto Rodrigues
Piano: José Veloso Rito
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Tema desta sessão:
Dióspiro & Outros Frutos

Coordenação/ leituras: Anthero Monteiro
Leituras: António Pinheiro, Isabel Marcolino, Joana Padrão, Luís Carvalho, Mário Vale Lima, Marta Tormenta e Rafael Tormenta e pelo próprio Daniel Maia-Pinto Rodrigues
.
Como sempre, as Quartas MalDitas (às quartas Quartas de cada mês), constam de poesia, música, entrevistas, conversa, debate e convívio. Entrada gratuita. Apareçam se puderem.

Para saberem onde fica, contacto telefónico, e-mail, mapa, etc, clicar AQUI

17 outubro 2008

O INFERNO


Debrucei-me à janela do inferno
e não vi nada que me horrorizasse;
pareceu-me um lugar igual aos outros,
cheio de gente e coisas. E alguém
do inferno me disse para entrar.
Não me lembro quem era ou se eram vários,
nem o que me disseram lá de dentro,
ou se essas pessoas sorririam,
se haveria alguém a lamentar-se
ou se desconfiei por um momento.
Fui e achei a porta do inferno,
abri a porta do inferno, entrei,
desde essa hora vivo no inferno.
É um lugar igual a qualquer outro,
cheio de gente e coisas. Todavia
sei que não pode ser senão o inferno
porque neste lugar não estás comigo.
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Amalia Bautista
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Imagem: Joël Dietlé (Estrasburgo, França)
(poema enviado por uma amiga a quem agradeço sinceramente a generosa partilha)
Sobre a autora: Nasceu em Madrid em 1962. Jornalista de formação, trabalhou como redactora no gabinete de imprensa do Conselho Superior de Investigações Científicas. Publicou diversos livros de poesia (o primeiro data de 1985), e podem-se encontrar poemas seus em diversas antologias.

10 outubro 2008

EU SEI, NÃO TE CONHEÇO MAS EXISTES


Eu sei, não te conheço mas existes.
por isso os deuses não existem,
a solidão não existe
e apenas me dói a tua ausência
como uma fogueira
ou um grito.

Não me perguntes como mas ainda me lembro
quando no outono cresceram no teu peito
duas alegres laranjas que eu apertei nas minhas mãos
e perfumaram depois a minha boca.

Eu sei, não digas, deixa-me inventar-te.
não é um sonho, juro, são apenas as minhas mãos
sobre a tua nudez
como uma sombra no deserto.
É apenas este rio que me percorre há muito
e desagua em ti,
porque tu és o mar que acolhe os meus destroços.
É apenas uma tristeza inadiável,
uma outra maneira de habitares
em todas as palavras do meu canto.

Tenho construído o teu nome com todas as coisas.
tenho feito amor de muitas maneiras,
docemente,
lentamente
desesperadamente
à tua procura, sempre à tua procura
até me dar conta que estás em mim,
que em mim devo procurar-te,
e tu apenas existes porque eu existo
e eu não estou só contigo
mas é contigo que eu quero ficar só
porque é a ti,
a ti que eu amo.


Joaquim Pessoa
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Imagem: Ali Farid (Las Vegas, Nevada, E.U.A)
Sobre o autor: nasceu em 1948. Poeta, pintor e publicitário, colaborou na revista Vértice e no Suplemento Cultural do Diário de Lisboa. Inicialmente, a sua obra começou ligada à sua militância comunista e à revolução de Abril de 74. Os temas preferidos são o amor e a denúncia social. Foi Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores com O Livro da Noite (1982).

07 outubro 2008

POESIA - REGRESSO DA ONDA POÉTICA

09 de Outubro (esta Quinta) - 21.30 h
Sala das Sessões da Junta de Freguesia de Espinho

Regresso da Onda Poética, em novo espaço e às 2as. Quintas-Feiras de cada mês (mantendo-se na cidade de Espinho).

Sessão de poesia subordinada ao tema Maldita Poesia. Música a cargo do grupo Vozes Trinadas

Para visualizar a morada e contactos da Junta de Freguesia, clicar aqui ...... Para ver mapa de localização da sessão na cidade de Espinho, clicar aqui

A sala da sessão fica pertíssimo da nova estação da CP. O acesso a partir de Porto ou Aveiro é fácil, mesmo para quem não viaja de automóvel. De comboio urbano, fica por 2,40 Eur ida e volta a partir do Porto, e por 4,30 de e para Aveiro. Para visualizar horários dos comboios urbanos para Espinho a partir do Porto ou Aveiro, clicar aqui

Sessão aberta a todos, com possibilidade de espontâneos na parte final. Apareçam, se puderem.

02 outubro 2008

POESIA E MÚSICA - VICTOR JARA

4 de Outubro (este Sábado) - 21.30 h
Café-Concerto da ESMAE

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Porto, Rua da Alegria
(junto à Rampa da Escola Normal)
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ENTRADA
LIVRE
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(clicar no cartaz para ver maior)
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Trata-se de um espectáculo de música e poesia, no qual vou participar juntamente com amigos do AJA-Força, grupo de intervenção poético-musical da AJA - Norte. Quem puder ou quiser, dê um saltinho até lá, a entrada é gratuita. Apareçam!

Para ver mapa do local e contactos (endereço e telefone) clicar aqui

18 setembro 2008

OBRA-PRIMA


Quando a tua mão acaricia a minha perna
os sensores da pele desencadeiam reacções sentimentais
e às vezes chego a ter uma reacção motora.
O ângulo da perna, a inclinação do pé –
maravilhas-te com a paisagem ocasional:
depois da curva da estrada
estabilizas o olhar na curva do joelho.
Os olhos impacientam-se em sacudidelas invisíveis
mas o espelho reflecte apenas imobilidade.
A sandália: o teu olhar vai do joelho à nudez do pé.
Este pé que calcorreia as ruas é também objecto de desejo:
Este pé que calca o travão a fundo.
Sei que vais beijar-me – talvez nem tu saibas
que a postura do teu corpo tem o formato de beijo.
A carícia necessita de um encontro minucioso,
da pressão exacta para que não me esmagues a rótula.
O contacto é doce na pele que te ofereço,
a carícia é a obra-prima da engenharia mecânica.
Olho a baía onde se reflectem os néons da noite
e deixo o corpo trabalhar à vontade.
Depois adormeço com a tua mão na minha perna
e a vaga consciência de que o paraíso se estende
da ponta dos pés até ao cimo da cabeça.


Rosa Alice Branco
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Sobre a autora: nasceu em Aveiro (1950). Doutorada em Filosofia, é professora na Escola Superior de Artes e Design de Matosinhos e investigadora no Departamento de Comunicação e Arte na Universidade de Aveiro. Tem 8 livros de poesia publicados em Portugal, incluindo a sua obra reunida: Soletrar o Dia. Já foi publicada em diversas línguas. Nota: Separações e negritos da minha responsabilidade, para facilitar a leitura. Consultar sempre o original.

10 setembro 2008

ODE À NOITE (INTEIRA)


Gosto do momento, exacto ou nem por isso,
em que se torna possível colar cartazes
nas paredes ao lado dos meus ombros (espero
o autocarro, vejo devagar, sorrio). Mas
gosto, sobretudo, dos cães quase sem dono
que roçam as esquinas, pisando restos de garrafas
– ou das pessoas que desconheço
e das bebidas todas que ignoro
(porque me matam menos e se chamam
– como eu – insónia, pesadelo, golpe baixo).
Existem, claro, raparigas louras um tanto
heterodoxas que não te apetece beijar
(a forca do bâton, perfeita – o cigarro aceso
pedindo outro lume). Essas mesmas que hão-de
um dia procriar com zelo, evitando rugas,
tumores e o mundo como representação misógina.
Mais lírica, sem dúvida, é a lavagem das ruas,
com a cerveja a premiar a farda
demasiado verde e os bigodes de serviço.
Outros, alguns, tornam concreto o torpor
de um charro e pedem-te em crioulo básico
um cigarro português que tu vais dar,
sem esforço nem palavras. Entre shots, piercings,
t-shirts de Guevara e gel, podes não acreditar
por algumas horas no axioma frágil do teu corpo.
Esfumas-te, como eles, no espelho de um bar
qualquer, país de enganos e baratas. E
quase gostas disso, quase: a música de punhais,
servil, um certo e procurado desencontro.
Um táxi te ensinará depois o caminho de casa
– ou o seu contrário, pois só ali (anónimo .
e desfocado) eras finalmente tu, ou podias ser.

O resto, a vida, fica para outra vez.


Manuel de Freitas
Foto: Joana França, Brasília (Brasil)
.
Nota: Separação final e negrito da minha responsabilidade, para facilitar a leitura. Aconselha-se consulta do original.
Nota sobre o autor: Nasceu em 1972 (35 anos), no Vale de Santarém. Vive desde 1990 em Lisboa, trabalhando como tradutor, crítico literário e editor. É co-director da revista Telhados de Vidro. Publicou vários livros de poesia, e ensaios sobre literatura portuguesa. Foi responsável (2002) pela organização da antologia Poetas sem Qualidades (Averno). Em 2006 foi-lhe atribuído o Prémio Literário Ruy Belo da Câmara Municipal de Sintra.

25 agosto 2008

PÁSSARO AZUL


Há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica aí dentro,
não vou deixar
ninguém ver-te.

há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu despejo whisky para cima dele
e inalo fumo de cigarros
e as putas e os empregados de bar
e os funcionários da mercearia
nunca saberão
que ele se encontra
lá dentro.

há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica escondido,
queres arruinar-me?
queres foder-me o
meu trabalho?
queres arruinar
as minhas vendas de livros
na Europa?

há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado esperto,
só o deixo sair à noite
por vezes
quando todos estão a dormir.
digo-lhe, eu sei que estás aí,
por isso
não estejas triste.
depois,
coloco-o de volta,
mas ele canta um pouco lá dentro,
não o deixei morrer de todo
e dormimos juntos
assim
com o nosso
pacto secreto
e é bom o suficiente
para fazer um homem chorar,
mas eu não choro,
e tu?

Charles Bukowski
.
Aqui há tempos partilhei convosco aqui o meu "Pássaro Negro", qual não foi o meu espanto ao dar de caras com este "Pássaro Azul" do Bukowski. Afinal, todos temos pássaros...
Como sempre, deixo para os mais curiosos a versão original, dado que a anterior é uma miha tradução bastante livre. Como curiosidade, para ouvir o poema dito pelo próprio Bukowski, clicar AQUI
.
Bluebird

There's a bluebird in my heart
that wants to get out
but I'm too tough for him,
I say, stay in there, I'm not going
to let anybody see
you.

there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I pur whiskey on him and inhale
cigarette smoke
and the whores and the bartenders
and the grocery clerks
never know that
he's
in there.

there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too tough for him,
I say,
stay down, do you want to mess
me up?
you want to screw up the
works?
you want to blow my book sales in
Europe?
there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too clever, I only let him out
at night sometimes
when everybody's asleep.
I say, I know that you're there,
so don't be
sad.
then I put him back,
but he's singing a little
in there, I haven't quite let him
die
and we sleep together like
that
with our
secret pact
and it's nice enough to
make a man
weep, but I don't
weep, do
you?

30 julho 2008

O NOIVADO DO SEPULCRO

Vai alta a lua! na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.

Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
D'entre os sepulcros a cabeça ergueu.
.
Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.

Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.

Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:

"Mulher formosa, que adorei na vida,
E que na tumba não cessei d'amar,
Por que atraiçoas, desleal, mentida,
O amor eterno que te ouvi jurar?"

"Amor! engano que na campa finda,
Que a morte despe da ilusão falaz:
Quem d'entre os vivos se lembrará ainda
Do pobre morto que na terra jaz?"

"Abandonado neste chão repousa
Há já três dias, e não vens aqui...
Ai, quão pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por ti!"

"Ai, quão pesada me tem sido!" e em meio,
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.

"Talvez que rindo dos protestos nossos,
Gozes com outro d'infernal prazer;
E o olvido cobrirá meus ossos
Na fria terra sem vingança ter!"

- "Oh nunca, nunca!" de saudade infinda
Responde um eco suspirando além...
- “Oh nunca, nunca!” repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.

Cobrem-lhe as formas divinas, airosas,
Longas roupagens de nevada cor;
Singela c'roa de virgínias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.

"Não, não perdeste meu amor jurado:
Vês este peito? reina a morte aqui...
É já sem forças, ai de mim, gelado,
Mas inda pulsa com amor por ti."

"Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
Da sepultura, sucumbindo à dor:
Deixei a vida... que importava o mundo,
O mundo em trevas sem a luz do amor?"

"Saudosa ao longe vês no céu a lua?"
- "Oh vejo sim... recordação fatal!"
- "Foi à luz dela que jurei ser tua
Durante a vida, e na mansão final."

"Oh vem! se nunca te cingi ao peito,
Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
Quero o repouso de teu frio leito,
Quero-te unido para sempre a mim!"

E ao som dos pios do cantor funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrado, d'infeliz amor.

Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.

Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.


Soares de Passos
Imagem: Famoso quadro do pintor simbolista austríaco Gustav Klimt, "O Beijo" (1907/8).
.
Nota: Nascido no Porto em 1826, Soares de Passos foi o expoente máximo do Ultra-Romantismo em Portugal. Morreu precocemente aos trinta e quatro anos, vítima de tuberculose, deixando um livro único – "Poesias". Segundo consta, a morbidez daquilo que escrevia revelava, apesar de tudo, autenticidade, pois os sentimentos eram os que realmente viveu, já que foi pessoa extremamente sofrida, por vezes dominada por uma doença que o deixou anos confinado ao seu quarto. Este é talvez o seu poema mais conhecido. Deixo-o aqui, pois embora o seu imaginário e tema possa parecer desactualizado e até ridículo para os tempos de hoje, não deixa de ser interessante e dá-nos uma ideia do que foi este período na nossa Literatura.

21 julho 2008

A VOLTA DA MULHER MORENA


Meus amigos, meus irmãos, cegai os olhos da mulher morena
Que os olhos da mulher morena estão me envolvendo
E estão me despertando de noite.
Meus amigos, meus irmãos, cortai os lábios da mulher morena
Eles são maduros e húmidos* e inquietos
E sabem tirar a volúpia de todos os frios.
Meus amigos, meus irmãos,
e vós que amais a poesia da minha alma
Cortai os peitos da mulher morena
Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono
E trazem cores tristes para os meus olhos.
Jovem camponesa que me namoras
quando eu passo nas tardes
Traz-me** para o contacto*** casto de tuas vestes
Salva-me dos braços da mulher morena
Eles são lassos, ficam estendidos imóveis ao longo de mim
São como raízes recendendo resina fresca
São como dois silêncios que me paralisam.
Aventureira do Rio da Vida,
compra o meu corpo da mulher morena
Livra-me do seu ventre como a campina matinal
Livra-me do seu dorso como a água escorrendo fria.
Branca avozinha dos caminhos,
reza para ir embora a mulher morena
Reza para murcharem as pernas da mulher morena
Reza para a velhice roer dentro da mulher morena
Que a mulher morena está encurvando os meus ombros
E está trazendo tosse má para o meu peito.
Meus amigos, meus irmãos,
e vós todos que guardais ainda meus últimos cantos
Dai morte cruel à mulher morena!



Vinicius de Moraes
.
Fotografia: Zanetta Hardy, Lebanon (PENS), EUA
Palavras usadas no original: *úmidos; **traze-me;***contato. Outras alterações em termos de realces e quebras de linha da minha responsabilidade, consultar sempre o original.

14 julho 2008

QUARTAS MALDITAS - ISTO É O TEU CORPO

16 de Julho (Quarta), às 22 h
Clube Literário do Porto
(clicar para saber morada, localização e contactos)

Mais uma sessão das Quartas MalDitas, com selecção de poemas em torno do corpo, dos corpos e de outras corporalidades diversas menos óbvias. Poesia, dança, música, conversa.

Convidados: Ex-Ricardo de Pinho Reixeira (poeta e editor da Corpos Editora), Ana Francês (bailarina), Rui David (voz e guitarra acústica)

Residentes: Anthero Monteiro (coordenação); Joana Padrão; Júlia Correia; Luís Carvalho; Mário Vale Lima; Marta Tormenta; Rafael Tormenta.
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Entrada livre.

07 julho 2008

A UM AUSENTE


Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o acto* sem continuação, o acto em si,
o acto que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.


Carlos Drummond de Andrade

* no poema original, dado o autor ser brasileiro, a palavra é ato.

27 junho 2008

CERVEJA


não sei quantas garrafas de cerveja consumi
enquanto esperava
que as coisas melhorassem
não sei quanto vinho e quanto whisky
e cerveja
sobretudo cerveja
consumi
após pedaços de mulheres
- à espera que o telefone tocasse
à espera do som dos passos,
e que o telefone tocasse
à espera do som dos passos,
e o telefone nunca toca
a não ser quando é demasiado tarde
e os passos nunca chegam
a não ser quando é demasiado tarde
quando o meu estômago está a subir
a sair pela minha boca
eles chegam frescos como flores primaveris:
"mas que merda fizeste contigo?
demorarão 3 dias até que me possas
dar uma queca novamente!"

a fêmea é durável
vive sete anos e meio mais que o macho
e bebe muito pouca cerveja
porque sabe que faz mal à figura.

e enquanto nós estamos a enlouquecer
elas saíram
e andam lá fora a dançar e a rir
com cowboys entesados.

pois bem, há cerveja...!
sacos e sacos de garrafas vazias
e quando apanhas um do chão
a garrafa cai através do fundo molhado
do saco de papel
rolando
fazendo barulho
entornando cinza molhada
cerveja fresca,
ou o saco cai às 4 da manhã
produzindo o único som da tua vida.

cerveja...
rios e mares de cerveja...
a rádio a passar canções de amor...
enquanto o telefone permanece silencioso
e as paredes permanecem direitas
de cima abaixo
de cima abaixo...

e cerveja...
cerveja é tudo o que resta.


Charles Bukowski

Nota: tradução livre da minha autoria, não completamente fiel ao original de forma deliberada. Algumas quebras de linha e repetições, bem como negritos e alguma pontuação da minha responsabilidade, de forma a facilitar a minha leitura pessoal. Deixo aqui o original, para os mais curiosos:

Beer

I don't know how many bottles of beer
I have consumed while waiting for things
to get better
I dont know how much wine and whisky
and beer
mostly beer
I have consumed after
splits with women-
waiting for the phone to ring
waiting for the sound of footsteps,
and the phone to ring
waiting for the sounds of footsteps,
and the phone never rings
until much later
and the footsteps never arrive
until much later
when my stomach is coming up
out of my mouth
they arrive as fresh as spring flowers:
"what the hell have you done to yourself?
it will be 3 days before you can fuck me!"

the female is durable
she lives seven and one half years longer
than the male, and she drinks very little beer
because she knows its bad for the figure.

while we are going mad
they are out
dancing and laughing
with horney cowboys.

well, there's beer
sacks and sacks of empty beer bottles
and when you pick one up
the bottle fall through the wet bottom
of the paper sack
rolling
clanking
spilling gray wet ash
and stale beer,
or the sacks fall over at 4 a.m.
in the morning
making the only sound in your life.

beer
rivers and seas of beer
the radio singing love songs
as the phone remains silent
and the walls stand
straight up and down
and beer is all there is.

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