10 setembro 2008

ODE À NOITE (INTEIRA)


Gosto do momento, exacto ou nem por isso,
em que se torna possível colar cartazes
nas paredes ao lado dos meus ombros (espero
o autocarro, vejo devagar, sorrio). Mas
gosto, sobretudo, dos cães quase sem dono
que roçam as esquinas, pisando restos de garrafas
– ou das pessoas que desconheço
e das bebidas todas que ignoro
(porque me matam menos e se chamam
– como eu – insónia, pesadelo, golpe baixo).
Existem, claro, raparigas louras um tanto
heterodoxas que não te apetece beijar
(a forca do bâton, perfeita – o cigarro aceso
pedindo outro lume). Essas mesmas que hão-de
um dia procriar com zelo, evitando rugas,
tumores e o mundo como representação misógina.
Mais lírica, sem dúvida, é a lavagem das ruas,
com a cerveja a premiar a farda
demasiado verde e os bigodes de serviço.
Outros, alguns, tornam concreto o torpor
de um charro e pedem-te em crioulo básico
um cigarro português que tu vais dar,
sem esforço nem palavras. Entre shots, piercings,
t-shirts de Guevara e gel, podes não acreditar
por algumas horas no axioma frágil do teu corpo.
Esfumas-te, como eles, no espelho de um bar
qualquer, país de enganos e baratas. E
quase gostas disso, quase: a música de punhais,
servil, um certo e procurado desencontro.
Um táxi te ensinará depois o caminho de casa
– ou o seu contrário, pois só ali (anónimo .
e desfocado) eras finalmente tu, ou podias ser.

O resto, a vida, fica para outra vez.


Manuel de Freitas
Foto: Joana França, Brasília (Brasil)
.
Nota: Separação final e negrito da minha responsabilidade, para facilitar a leitura. Aconselha-se consulta do original.
Nota sobre o autor: Nasceu em 1972 (35 anos), no Vale de Santarém. Vive desde 1990 em Lisboa, trabalhando como tradutor, crítico literário e editor. É co-director da revista Telhados de Vidro. Publicou vários livros de poesia, e ensaios sobre literatura portuguesa. Foi responsável (2002) pela organização da antologia Poetas sem Qualidades (Averno). Em 2006 foi-lhe atribuído o Prémio Literário Ruy Belo da Câmara Municipal de Sintra.

8 comentários:

Claudia Sousa Dias disse...

não conhecia...

mas gostei.


CSD

Luis Beirão disse...

Olá Cláudia.

Na verdade dei de caras com este poema há uns tempos, e agradou-me (sobretudo algumas expressões em particular, incluindo a final) e depois fui tentar saber quem era o autor e cheguei ao Manuel de Freitas.

Bjs,
Luis

Anónimo disse...

Também não conhecia e gostei. Os ritmos tão diferentes da noite "Gosto do momento, exacto ou nem por isso,
em que se torna possível colar cartazes
nas paredes ao lado dos meus ombros (espero
o autocarro, vejo devagar, sorrio)."
Os encantos sórdidos da noite, também gostei (a parte dos cães nem tanto) da forma como fala deles.
Difícil optar entre a noite e a madrugada (esta última principalmente nos dias de sol). Talvez ir para a cama depois de usufruir das duas (há quem o faça)
Beijos
Luísa

Luis Beirão disse...

Luísa,

Fico contente que gostaste.
Para mim, o mais importante deste poema, além dos encantos da noite mais explícitos, está na sua função de limbo, de realidade àparte da realidade, porque nela "o resto, a vida (e as suas praticalidades imensas) fica para outra vez".

Bjs,
Luis

Memória transparente disse...

"Amo a vida. Amo a poesia"

Luis Beirão disse...

Hummm...

A citação significa que também tu? ;-)

Bjs,
Luis

luzialma disse...

'O resto, a vida, fica para outra vez.'
Como se tudo o 'resto' não existisse nem o taxi não te trouxesse à realidade.
Gosto.

Augusto

Luis Beirão disse...

Olá Augusto!

Foi precisamente esse espírito que me marcou em relação a esta escolha aqui. Ainda bem que te agradou.

Abraço,
Luis


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