30 julho 2008

O NOIVADO DO SEPULCRO

Vai alta a lua! na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.

Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
D'entre os sepulcros a cabeça ergueu.
.
Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.

Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.

Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:

"Mulher formosa, que adorei na vida,
E que na tumba não cessei d'amar,
Por que atraiçoas, desleal, mentida,
O amor eterno que te ouvi jurar?"

"Amor! engano que na campa finda,
Que a morte despe da ilusão falaz:
Quem d'entre os vivos se lembrará ainda
Do pobre morto que na terra jaz?"

"Abandonado neste chão repousa
Há já três dias, e não vens aqui...
Ai, quão pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por ti!"

"Ai, quão pesada me tem sido!" e em meio,
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.

"Talvez que rindo dos protestos nossos,
Gozes com outro d'infernal prazer;
E o olvido cobrirá meus ossos
Na fria terra sem vingança ter!"

- "Oh nunca, nunca!" de saudade infinda
Responde um eco suspirando além...
- “Oh nunca, nunca!” repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.

Cobrem-lhe as formas divinas, airosas,
Longas roupagens de nevada cor;
Singela c'roa de virgínias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.

"Não, não perdeste meu amor jurado:
Vês este peito? reina a morte aqui...
É já sem forças, ai de mim, gelado,
Mas inda pulsa com amor por ti."

"Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
Da sepultura, sucumbindo à dor:
Deixei a vida... que importava o mundo,
O mundo em trevas sem a luz do amor?"

"Saudosa ao longe vês no céu a lua?"
- "Oh vejo sim... recordação fatal!"
- "Foi à luz dela que jurei ser tua
Durante a vida, e na mansão final."

"Oh vem! se nunca te cingi ao peito,
Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
Quero o repouso de teu frio leito,
Quero-te unido para sempre a mim!"

E ao som dos pios do cantor funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrado, d'infeliz amor.

Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.

Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.


Soares de Passos
Imagem: Famoso quadro do pintor simbolista austríaco Gustav Klimt, "O Beijo" (1907/8).
.
Nota: Nascido no Porto em 1826, Soares de Passos foi o expoente máximo do Ultra-Romantismo em Portugal. Morreu precocemente aos trinta e quatro anos, vítima de tuberculose, deixando um livro único – "Poesias". Segundo consta, a morbidez daquilo que escrevia revelava, apesar de tudo, autenticidade, pois os sentimentos eram os que realmente viveu, já que foi pessoa extremamente sofrida, por vezes dominada por uma doença que o deixou anos confinado ao seu quarto. Este é talvez o seu poema mais conhecido. Deixo-o aqui, pois embora o seu imaginário e tema possa parecer desactualizado e até ridículo para os tempos de hoje, não deixa de ser interessante e dá-nos uma ideia do que foi este período na nossa Literatura.

13 comentários:

Claudia Sousa Dias disse...

Tem qualquer coisa de Edgar Allan Poe...

deixo-te um beijinho...


CSD

Luis Beirão disse...

Cláudia,

Na verdade, é muito natural.
Poe nasceu em 1809 (apenas 17 anos antes, portanto) e morreu em 1849 (Soares morreu 11 anos depois, em 1860). São contemporâneos, portanto e partilham de facto uma mesma corrente, embora com diferenciações, uma vez que Poe escrevia também policiais. Poe morreu, como Soares, bastante novo, com 40 anos.

Isto tudo, claro, se as minhas contas me não falham...

Bjs,
Luis

Claudia Sousa Dias disse...

beijos para ti também. amanhã posto o comentário ao livro do Pedro Ribeiro no orgialiteraria e taçlvez também mais um texto no nhasempreumlivro, uma vez que tenho vários em lista de espera...

CSD

Betânia disse...

Amei! Adorei o poema, é muito ao estilo daquilo que me toca e do que gosto de ler e sentir. Talvez queiras dar um salto ao meu blog também. Um beijo, Rita

Dalaila disse...

Não conhecia este poeta, mas gsotei muito destas palavras. beijinho

Luis Beirão disse...

Olá Rita,

Ainda bem que gostaste, pois confesso-te que este género de poesia já não tem muitos adeptos 8devido ao seu excesso de dramatismo), embora possamos admitir que, surpreendentemente, "casa" bem com algumas tendências góticas modernas, apesar de ser um poema do sec. XIX, escrito (e temos tendência a menosprezar este aspecto) há mais de 150 anos atrás.

Bjs,
Luis

Luis Beirão disse...

Olá, Dalila!

Ora nesse caso é bom sinal, pois consegui acrescentar-te (salvo seja) alguma coisa de novo, o que só pode ser bom!
Mas este poema (hoje em dia não sei) era, há uns anos atrás, dado nas escolas inclusive, por ser o exemplo máximo (digamos assim) do Ultra-Romantismo português.

Bjs,
Luis

Poesia Portuguesa disse...

Um excelente e sensível poema que gostei de reler aqui!

A imagem de Klimt (que eu adoro) "O Beijo" é perfeita para este poema.

Um abraço e boa semana

Luis Beirão disse...

Olá Poesia!

Devolvo-te o beijo, e folgo em saber que apreciaste o poema e a imagem escolhida!
(já espreitei o novo blogue)

Bjs,
Luis

Unknown disse...

Olá...sou apaixonada por esse poema!!
é lindo demais!

Luis Beirão disse...

Olá Belle!

Também gosto, é claro.
Sobretudo, porque diz respeito a uma fase da literatura bastante sui generis...

Bjs,
Luis

Anónimo disse...

Não é por nada... mas este poema é de uma lamechice que não leva a lado nenhum. Por muito bonito que fosse é feio na sua tentativa de o ser...

Luis Beirão disse...

Anónimo,

É como está dito em cima: corresponde e simboliza uma fase literária (o Ultra-Romantismo) que consistia precisamente nisso - romantismo levado ao seu excesso. Daí essa tua opinião, que seria a de muita gente hoje em dia, aliás.


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