31 outubro 2016

AOS POETAS


Somos nós
As humanas cigarras.
Nós,
Desde o tempo de Esopo conhecidos...
Nós,
Preguiçosos insectos perseguidos.

Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos,
A passar...

Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras.
Asas que em certas horas
Palpitam.
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura.
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.

Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz.
Vinho que não é meu,
Mas sim do mosto que a beleza traz.

E vos digo e conjuro que canteis.
Que sejais menestréis
Duma gesta de amor universal.
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural.

Homens de toda a terra sem fronteiras.
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele.
Crias de Adão e Eva verdadeiras.
Homens da torre de Babel.

Homens do dia-a-dia
Que levantem paredes de ilusão.
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão.



Miguel Torga


Nota: Pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha, nascido em S. Martinho de Anta (Sabrosa) a 12 de Agosto 1907 e falecido a 17 de Janeiro 1995 (87 anos). Foi um dos mais influentes poetas e escritores portugueses do sec. XX, tendo recebido o Prémio Camões em 1989. Oriundo de família humilde, aos 10 anos foi servir como criado para uma casa apalaçada do Porto e um ano depois frequentou o seminário em Lamego. Com 13 anos, em 1920 foi para o Brasil trabalhar na fazenda de café do tio, em Minas Gerais. Ao fim de quatro anos, o tio apercebe-se da sua inteligência e patrocina-lhe os estudos liceais em Leopoldina. Em 1925 (18 anos), convicto de que ele viria a ser doutor, o tio propôs-se pagar-lhe os estudos em Coimbra como recompensa dos cinco anos de serviço. Em 1928 (21 anos), entra para a Faculdade de Medicina e publica o seu primeiro livro de poemas. Um ano depois, deu início à colaboração na Presença, revista fundada por José Régio, Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, grande impulsionadora do movimento modernista em Portugal. Em 1930 (23 anos), rompe com a revista, por «razões de discordância estética e razões de liberdade humana», assumindo uma posição independente. A sua obra traduz a sua rebeldia contra as injustiças e o inconformismo diante dos abusos de poder. Reflecte sua origem aldeã, a experiência médica, em contacto com a gente pobre, e ainda os cinco anos que passou no Brasil. Chegou a ser preso em 1940 (33 anos) por críticas ao franquismo. Crítico da praxe e tradições académicas, chama «farda» à capa e batina. Em Leiria exerce a sua profissão de médico, entre 1939 e 1942. Casou-se com Andr´é Crabbé em 1940, uma estudante belga aluna de Estudos Portugueses em Bruxelas (pupila de Vitorino Nemésio), que viera a Portugal fazer um curso de Verão. A sua filha, Clara Rocha, nascida a 3 de Outubro de 1955, casou-se e divorciou-se mais tarde de Vasco Graça Moura. Sofrendo de cancro, publicou o seu último trabalho, em 1993, vindo a falecer em Janeiro de 1995. A sua campa rasa na aldeia de S. Martinho de Anta, tem uma torga (planta de montanha) plantada a seu lado.

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