27 maio 2008

NÃO DESISTI DE HABITAR A ARCA AZUL...


Não desisti de habitar a arca azul
do antiquíssimo sossego do universo.
A minha ascendência é o sol e uma montanha verde
e a lisa ondulação do mar unânime.
Há novecentas mil nebulosas espirais
mas só o teu corpo é um arbusto que sangra
e tem lábios eléctricos e perfuma as paredes.

Aos confins tranquilos entre ilhas mar e montes
vou buscar o veludo e o ouro da nostalgia.
Deponho a minha cabeça frágil sobre as mãos
de uma mulher de onde a chuva jorra pelos poros.
Ó nascente clara e mais ardente do que o sangue,
sorvo o cálice do teu sexo de orquídea incandescente!
A minha vida é uma lenta pulsação
sob o grande vinho da sombra, sob o sono do sol.
Há bois lentos e profundos no meu corpo
de um outono compacto e negro como um século.
Com simultâneas estrelas nas têmporas e nas mãos
a deusa da noite, sonâmbula, desliza.
Ao rumor da folhagem e da areia
escrevo o teu odor de sangue, a tua livre arquitectura.
Prisioneiro de longínquas raízes
ergo sobre a minha ferida uma torre vertical.
Vislumbro uma luz incompreensível
sobre os campos áridos das semanas.
Elevo o canto profundo do meu corpo
sob o arco das tuas pernas deslumbrantes.
Escrevo como se escrevesse com os meus pulmões
ou como se tocasse os teus joelhos planetários
ou adormecesse languidamente no teu sexo.



António Ramos Rosa

6 comentários:

lc disse...

Uma afirmação de vida, entre a "ascendência" e "um outono compacto e negro",no encontro,na fusão da alma com a matéria.
Muito bonitas estas imagens de simbiose entre o homem e as coisas primordiais.
Gosto muito de ler este poeta.Gosto muito de ler este poema no teu lugar.

Luis Beirão disse...

Olá Laura,

Fico contente que entendeste aquilo que para mim é claro no poema, a oposição entre o que o poeta designa como "a minha vida é uma lenta pulsação
sob o grande vinho da sombra, sob o sono do sol" e a tal intensidade e "luz incompreensível" que é estar com a figura amada, uma luz
"sobre os campos áridos das semanas".

Bjs,
Luis

Dalaila disse...

e nunca se pode desistir de escrever com os pulmões e habitar na casa onde queremos

Luis Beirão disse...

Olá Dal,

É verdade.Nunca se pode desistir.
Mas a verdade é que os "campos áridos das semanas" têm tendência a secar as "montanhas verdes", e o "outono compacto e negro" procura a todo o custo cegar-nos para que não mais vejamos nenhuma "luz", muito menos as incompreensíveis. No meio disto tudo, procura-se ascender (e acender) as luzes na alma...

Bjs

Claudia Sousa Dias disse...

Gosto mais deste poema do que da cerveja...


;-)

CSD

Luis Beirão disse...

Cláudia,

Na verdade não se pode censurar a tua preferência...

Bjs,
Luis


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