07 abril 2008

SEPARAÇÃO


Desmontar a casa
e o amor. Despregar
os sentimentos das paredes e lençóis.
Recolher as cortinas após a tempestade
das conversas.
O amor não resistiu
às balas, pragas, flores
e corpos de intermeio.

Empilhar livros, quadros,
discos e remorsos.
Esperar o infernal
juízo final do desamor.

Vizinhos assustam-se de manhã*
ante os destroços junto à porta:
-pareciam amar-se tanto!*

Houve um tempo:
uma casa de campo,
fotos em Veneza,
um tempo em que sorridente
o amor aglutinava festas e jantares.

Amou-se um certo modo de despir-se
de pentear-se.
Amou-se um sorriso e um certo
modo de pôr a mesa*. Amou-se
um certo modo de amar.

No entanto, o amor bate em retirada
com as suas roupas* amassadas, tropas de insultos
malas desesperadas, soluços embargados.

Faltou amor no amor?
Gastou-se o amor no amor?
Fartou-se o amor?

No quarto dos filhos
outra derrota à vista:
bonecos e brinquedos pendem
numa colagem de afectos nado-mortos.*

O amor ruiu e tem pressa de ir embora
envergonhado.

Erguerá outra casa, o amor?
Escolherá objectos*, morará na praia?
Viajará na neve e na neblina?

Tonto, perplexo, sem rumo
um corpo sai porta fora
com pedaços de passado na cabeça
e um impreciso futuro.
No peito, o coração pesa
mais que uma mala de chumbo...

.
.
Affonso Romano de Sant'Anna
.
Alguns dados sobre o poeta: - Nasceu em 1937 em Belo Horizonte e foi criado em Juiz de Fora. Lança o seu primeiro livro em 1962. Fez parte de vários movimentos da moderna poesia brasileira e participou em movimentos políticos e sociais que marcaram o país. Desde 1965 até hoje, leccionou várias vezes no Brasil e estrangeiro (E. Unidos, Alemanha, França). Promoveu nos anos 70 a visita de conferencistas internacionais ao Rio, entre os quais Michel Foucault, cuja visita teve grande impacto num país em pleno regime ditatorial. Em 1984, assume no "Jornal do Brasil" a coluna que era de Carlos Drummond de Andrade. O jornal publica os seus poemas na página de política, e não no suplemento literário. Segundo o mesmo, o poeta deve falar sobre assuntos que interessem às pessoas em geral, e reencontrar o seu lugar na sociedade.Foi nos anos 90 Presidente da Fundação Biblioteca Nacional (a oitava maior biblioteca do mundo) e criou o Sistema Nacional de Bibliotecas e o PROLER (Programa de Promoção da Leitura).
Nota final: palavras a asterisco adaptadas para português europeu: vizinhos se assustam de manhã; pareciam se amar tanto; botar a mesa; com suas roupas amassadas; afectos natimortos; objetos.

6 comentários:

Ana Ferreira disse...

Oi,
este poema, para mim, é um misto entre o desconhecido, o amargo e o belo...
Desconhecida a razão do fim do Amor,
amargo o que se sente
e belo porque o Amor consegue abarcar tantas formas de sentir e pode ser um caminho de felicidade!!
É intensivo...

Dalaila disse...

é de facto o desmontar a casa dos afectos, dos sentimentos, e a reconstrução lenta de uma nova casa, só que nisto tudos não nos podemos perder de nós

Luis Beirão disse...

Olá Ana,

O poema é menos mau. Acho piada sobretudo às expressões militares aplicadas à separação, pois que algumas se tornam efectivamente uma guerra: "o amor bate em retirada com suas tropas de insultos...", etc

Bjs

Luis Beirão disse...

Dal,

O pior é que, se calhar, se desmonta mais facilmente a casa que os sentimentos. Aliás, será possível desmontar os sentimentos?

Bjs

Anónimo disse...

este foi um poema que achei lindo...hoje apenas quero deixar um beijo e agradecer por toda uma poesia que conheci atraves de ti.

Luis Beirão disse...

Olá anónimo/a,

Embora não consiga perceber ou saber quem és, isso não importa. Na verdade, o que importa é que fico grato, se te pude dar a conhecer coisas bonitas através da poesia. É aquilo que se pretende, e portanto é para mim uma satisfação, e mais que isso não posso pedir.


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