18 abril 2008

OLHARES CANSADOS

I
Corpos:
Suados, cansados, mirrados,
Que pela seara* vêm caminhando.
Olhares:
Mortos, vagos, parados,
Sem forças para olhar.
Cérebros que pensam sem pensar,
Pernas que andam sem andar,
Obedecendo a uma rotina
Que a mente já não pode controlar.
A vida passou ao lado,
Mas nem a morte quis ficar!
Ficou apenas um sono,
Uma letargia,
Que transforma os homens
Em mortos vivos,
Que nem ousam sequer pensar.
Não ousam...
Não ousam, ou já esqueceram,
Pois há já muito tempo que não pensam.
Trabalham, apenas....

II
Olhares cansados que se cruzam,
Sem se dar conta de que o fazem,
Pois que se esquecem de olhar.
Olhares mortos, vagos, parados,
Guardam ainda na retina
A seara* de tomate que todo o dia contemplaram...
O dia alongou-se, parecia não ter fim...
E quando o corpo se vergava, por fim,
O pôr-do-sol chegou...
E com ele, um vermelho quente, sem vida, desmaiado
(como os olhos voltando da seara*),
Inundou tudo, como se a seara* fosse de fogo.
E depois a noite desceu...
Agora, a caminho da aldeia,
As mentes fatigadas, as pernas cansadas,
Os olhares parados, as mãos calejadas,
Querem apenas o repouso merecido.
Comem não para viver,
Mas para cumprir o mesmo ritual...
Espera-os uma noite agitada,
Trabalhando como sempre na seara*,
Pois a mente, cansada,
Nada mais consegue sonhar!
E levantam-se antes do nascer do sol,
Para mais um dia de trabalho.
A noite não lhes deu repouso:
A mente não descansou, só o corpo.
E lá vão...
Olhares cansados,
Mortos, vagos, parados,
A caminho, como voltaram,
Da seara*...
Luis Beirão
Fotografia: Dan Shirley (R. Unido)
.
*O termo seara aplica-se, é sabido, a um campo de cereais, mas neste poema surge associado a um campo de tomate, pois refere-se à forma como era designado pelos locais. Houve tempos em que parte significativa da população das aldeias montanhosas e pobres das Beiras migrava, sazonalmente, para o Alentejo e Ribatejo para trabalhar na época das colheitas (sobretudo cereais), onde eram usados como mão-de-obra intensiva, dormindo em barracões ou ao relento. Eram pagos à jorna e as condições de trabalho eram duríssimas, apenas para regressarem no Inverno com algum dinheiro às suas aldeias natais. É vulgar ouvir-se aos mais idosos das pequenas aldeias da Beira Baixa contarem histórias da época da sua vida em que "foram para a ceifa". Este fenómeno, embora residual, ainda persiste, hoje em dia mais associado à agricultura intensiva e de regadio do Ribatejo onde, com a reconversão agrícola, muitas extensões de terra antes usadas para cultivo de cereais (e por isso anteriormente designadas de searas), são agora ocupadas por culturas intensivas de produtos para a indústria alimentar (como é o caso do tomate) que ainda exigem, apesar da maquinaria, muita mão-de-obra num curto espaço de tempo, sob pena das colheitas se perderem. Este poema foi escrito há 12/13 anos atrás em Valada, aldeia perto do Cartaxo. Não resisto a recomendar, para quem quiser saber um pouco mais sobre este fenómeno, a leitura do romance "Gaibéus" (1939) de Alves Redol.

6 comentários:

Ana Ferreira disse...

Não resisto a comentar o poema!
Interessante e bem actual!
Não tinha reparado que era teu...
e a imagem, escolhida a dedo...
Bjs

Luis Beirão disse...

Ana,

Por uma série de factores, aqui no blog está mais bem desenvolvido o porquê deste poema e desta opção. Digamos que este espaço é para quem gosta de ler (imprimir eventualmente) com mais atenção, e logo a notinha de rodapé mais desenvolvida e mais explícito o nome do autor, etc

Dalaila disse...

e essa sear há-de voltar aos cansados, e há-de suar os corpos que caminham e que olhar e querem viver, porque não estar é ficar morto

Luis Beirão disse...

Olá Dal,

Não estar é ficar morto...
Muito provavelmente terás razão.
Certas ausências (mentais sobretudo) equivalem-se à morte.

Bjs

Anónimo disse...

"Não estar é ficar morto..."

Ganhei o dia com esta tua frase, amigo!

Beijo*
Manuela Fonseca

Luis Beirão disse...

Olá Manuela,

Por acaso a frase não era, inicialmente minha, mas parece-me bem, de facto. Obrigado por teres passado!

Bjs


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