13 agosto 2016

UMA VIDA DE CÃO


Não
não é a poesia caixa de música
ou a poesia piolho místico enterrado no sebo destes dias
ou qualquer outra
que podem dissolver a tua alma
tão problemática
no vinho da beatitude

Ah
o «mistério» da poesia a poesia
técnica da confusão
a capelista poética e os primeiros fregueses
ainda a medo ainda receosos
de te pedirem a Dor em alfinetes que não tenhas
logo ali à mão

E quando dizes «Poesia» eu tenho nojo
aquele nojo violento que me dá
o olhar furtivo a atenção desatenta
dos que se demoram nos lavabos nas salas dos cinemas
de mãos distraídas procurando
a solução da noite

Instalaram-se em ti
a mesma contracção suspeita
a mesma hipocrisia o mesmo sobressalto
a mesma curva obscena
que o olhar descreve
goza
e disfarça

Quando dizes «Poesia» dizes medo
dizes família tradição classe
e a vida de cão que te esperava
e que é hoje a tua vida a tua «transcendente»
vida de cão

*
Ensinaram-te palavras que pareciam
prontas a derrotar quem as ouvisse
ensinaram-te gestos para elas
e a tal ponto te humilharam
que te puseram de pé
limpo
inteligente
e aprumado

Pronto a seguir
seguiste
e agora estás aqui pois claro
angustiado e iludido
mas deliciado

*
Até aos útlimos arcanos
cafés e leitarias
seguiste André Breton
ou a sombra dele
e a aventura mental que procurava
um sinal exterior
um estilhaço vivo do acaso
a Nadja lisboeta que salvasse
ou a noite ou a vida
acabou em «bons» poemas «maus» poemas
em palavras e palavras

E coberto de palavras enterrado
numa terra de murmúrios de gemidos
teu coração já nada faz mover
senão moinhos de palavras
e «a dor é grande» dizes tu
«mas sublime»

*
Mas não sou eu que te lamento
Os teus mitos esperam-te
já impacientes

Agora põe-te a andar
agora passa por cá daqui a uns anos

Talvez me encontres
talvez possa fazer qualquer coisa por ti
qualquer coisa simples
quase inútil
quase ridícula
          oferecer-te uma sílaba
          um conselho
          um cigarro



Alexandre O'Neill

Nota:  Poeta nascido a 19 de Dezembro de 1924, em Lisboa. O pai era funcionário bancário, de ascendência irlandesa. Sobretudo auto-didacta, fez os estudos de liceu e chegou a frequentar o Curso de Pilotagem na Escola Náutica. Saiu de casa aos 20 anos e tornou-se escriturário na Caixa de Previdência dos Profissionais do Comércio. Dava mostras de estar a par do movimento Surrealista que se disseminava pela Europa. Alguns dos seus amigos nas tertúlias da Pastelaria A Mexicana tinham estado em Paris, onde conheceram André Breton. Com alguns deles, ligados à escrita e artes plásticas, muitos vindos do curso de Belas Artes na António Arroio (como Cesariny, António Pedro, Mário Domingues e Moniz Pereira, para citar alguns), O'Neill esteve na fundação do Grupo Surrealista de Lisboa, o grupo que introduziu o surrealismo em Portugal. A primeira e única exposição do grupo, em 1949, estve rodeada de polémica. Desde aí, foi alvo de vigilância pelo regime de Salazar. Chegou a estar preso em Caxias. A PIDE negou-lhe o passaporte, para ir ter em Paris com Nora Mitrani (socióloga e escritora surrealista búlgara por quem se apaixonou), facto que o poeta nunca esqueceu e deixou explícito no seu conhecido poema Um Adeus Português. Apesar da sua afirmação como poeta com o livro No Reino da Dinamarca (1958), viveu sobretudo da sua actividade como redactor publicitário (entre os seus famosos slogans conta-se o conhecido Há mar e mar, há ir e voltar!). Casou por 2 vezes e teve 2 filhos, um de cada casamento. Dividiu os últimos dias entre Lisboa e Constância, no Ribatejo, onde hoje se encontra uma biblioteca com o seu nome que conserva parte do seu espólio por doação do próprio. Faleceu em Lisboa a 21 de Agosto de 1986, com 61 anos, devido a um acidente vascular cerebral.

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