12 fevereiro 2008

A CARTA DA PAIXÃO


Esta mão que escreve a ardente melancolia da idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo
aberta de têmpora a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração.
A demência lavra a sua queimadura
desde os seus recessos negros onde se formam as estações
até ao cimo, nas sedas que se escoam
com a largura fluvial da luz e a espuma,
ou da noite e as nebulosas e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia:
a língua alumia-se:
O mel escurece dentro da veia jugular
talhando a garganta.
Nesta mão que escreve afunda-se a lua,
e de alto a baixo, em tuas grutas obscuras,
essa lua tece as ramas de um sangue
mais salgado e profundo.

E o marfim amadurece na terra como uma constelação.
O dia leva-o, a noite traz para junto da cabeça:
essa raiz de osso vivo.
A idade que escrevo
escreve-se num braço fincado em ti,
uma veia dentro da tua árvore.
Ou um filão ardido de ponto a ponta
da figura cavada no espelho.
Ou ainda a fenda na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa desarrumação das imagens.
E trabalha em ti o suspiro do sangue curvo,
um alimento violento
cheio da luz entrançada na terra.
As mãos carregam a força desde a raiz dos braços
a força manobra os dedos ao escrever da idade,
uma labareda fechada,
a límpida ferida que me atravessa
desde essa tua leveza sombria como uma dança
até ao poder com que te toco.

A mudança.
Nenhuma estação é lenta
quando te acrescentas na desordem,
nenhum astro é tao feroz agarrando toda a cama.
Os poros do teu vestido.
As palavras que escrevo
correndo entre a limalha.
A tua boca como um buraco luminoso, arterial.
E o grande lugar anatómico
em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz,
o silêncio alimenta-se fixamente
de mel envenenado.
E eu escrevo-te toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados,
as noites que crescem nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce:
eu torço-a entre os braços.
E há roupas vivas, o imóvel relâmpago das frutas.
O incêndio atrás das noites
corta pelo meio o abraço da nossa morte.
Os fulcros das caras um pouco loucas engolfadas,
entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia
como o aroma entre os tendões da madeira fria.
És uma faca cravada na minha vida secreta.
E como estrelas duplas
consanguíneas,
luzimos de um para o outro
nas trevas.


Herberto Hélder

Nota: Como sempre, as divisões de versos foram alteradas para ajustar ao que o espaço permitia, e também em parte ao ritmo que à minha leitura pessoal parecia mais conveniente ou mais propício à minha compreensão. Aconselha-se por isso consulta do original, para saber as divisões exactas usadas pelo autor. Também os realces são da minha responsabilidade.

7 comentários:

Ana Ferreira disse...

Como sempre, tudo assenta na perfeição... A imagem que acompanha o poema, e o seu enquadramento no espaço! O rosto a preto e branco com o rasto de sangue vermelho... vermelho esse que dá cor, que dá VIDA!
Aroma entre os tendões da madeira fria... num braço fincado em ti, uma veia dentro da tua árvore... Simplicidade que nos "entra" na sensivilidade e nos gestos da alma
Lindo! Bj

Ana Ferreira disse...

isto dos teclados e tal...
desculpa o erro em sensibilidade...
o b e o v estão juntinhos...
bj

Luis Beirão disse...

Ana,

Os teclados são chatos em geral.
Por acaso essa parte do aroma entre os tendões é também uma das frases neste texto que me agradam particularmente.

Ana Ferreira disse...

Então Luís, como é que tu anda por ai? Tens andado mais caladito, ou sou eu que falo mais... ;-)
Quanto ao poema, penso que quanto mais o lêmos mais conseguimos sorver o seu conteudo e a sua magia.
E afinal de contas, a vida é um conjunto de estados agradáveis, esquisitos e dolorosos... Resta que tiremos o maior partido de todos eles...
Beijocas

Ana Ferreira disse...

A ideia é perguntar como é que tudo anda por ai? ai os teclados... ;-)
Bom trabalho e boa continuação!

Dalaila disse...

é mesmo linda esta carta, retrata a pele e o corpo no seu melhor estado

Luis Beirão disse...

Dal,

É muito linda, também acho. E sobretudo, muito intensa, de uma intensidade que chega a ferir.

Bjs


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