06 dezembro 2007

UM SERÃO NA ALDEIA


É noite cerrada, e no pequeno caminho de terra batida não se vê absolutamente nada. Ainda assim, o grupo avança. As sombras das oliveiras ladeiam o caminho, com um dos lados constituído por uma trincheira escavada na rocha xistosa. A erva das bermas está molhada e a terra, meio barrenta, escorre água vinda de um cano ali perto. A iluminação é fraca, vem apenas de um dos poucos postes de luz branca existentes na aldeia, enfiado entre duas ramadas de oliveira, por debaixo das quais se sentem os pés a pisar as azeitonas já maduras que entretanto foram caindo. Ao fundo, ouve-se o barulho das águas de um ribeiro, que correm abundantemente sob um velho pontão.

Está tanto frio que imensas baforadas de um fumo espesso se tornam visíveis no ar nocturno, sempre que alguém se sente compelido a falar. Trata-se de um frio real, palpável, daqueles que se nos entranham nos ossos, até ao fundo, e embora se sinta no ar a humidade de chuva recente, o céu nocturno está estrelado. De vez em quando, escuta-se um cão a ladrar na noite.
Serão talvez onze e meia, mas parece mais tarde, tudo na aldeia se encontra no mais completo silêncio, e as poucas pessoas acordadas estarão talvez à lareira. Sente-se no ar um cheiro agradável e familiar a chaminé e a lenha queimada.
A tasca a que chamamos café fechou cedo, e nada mais há a fazer senão recolher à adega do Zé. O vinho caseiro e elaborado sem grandes critérios de enologia senão aqueles que respeitam o gosto do seu proprietário, mesmo ainda novo, já se bebe, e mais ainda com umas azeitonas em água e sal a acompanhar. Lá dentro (é a esperança de todos) sempre estará um pouco mais quente.

O Natal aproxima-se. Sente-se na atmosfera. Aqui sente-se mesmo, e tem a ver com clima e temperatura, a vegetação, as azeitonas que caem das oliveiras, os rostos das pessoas transidas de frio na noite, a quietude, o contexto geral... mesmo que não existam mais luzes, e mais montras e feriados, e muita gente a fazer compras, e mais programas na televisão. Sente-se e pronto, paira no ar e contagia e impregna todas as coisas.
Nunca vimos muita televisão na aldeia. Apetece mais conversar ao redor do lume, jogar umas cartas no café, ou então recolher a uma adega, ou mesmo ir para a cama mais cedo. Mas as noites no Inverno são forçosamente longas, e apetece sempre companhia, proximidade (como os animais num estábulo), para com isso aquecer ambos: corpo e alma.

Com um barulho de ferrolhos e trancas, o Zé abre a adega. Entramos todos e fechamos a porta atrás. A adega, se assim se lhe podia chamar, estava isolada, afastada das casas de habitação, e ladeada por um curral de cabras e um loureiro, que debruçava a sua ramada sobre o acesso. Não passava de uma velha casa de xisto com um telhado de telhas canudo rústicas e já cheias de musgo, com lajes a tapar alguns buracos aqui e além. Lá dentro, uma divisão baixa, com tecto de madeira já meio a apodrecer, paredes de barro e xisto e chão em terra batida... como quase todas as adegas por aqui.

Nas paredes e no tecto, pequenas ferramentas e artefactos, pendurados por pregos enferrujados ou em toscas prateleiras improvisadas com tábuas de madeira: artefactos usados na extracção da resina noutros tempos, pequenos pregos de madeira outrora usados nas velhas colmeias de cortiça, ferramentas diversas de carpintaria artesanal, serrotes, tesouras de podar, alicates, martelos... Numa das paredes, uma antiga canga de bois e uma albarda de um burro, ajudam a completar o quadro.
À direita, dois pipos já velhos e sem torneira. No lugar onde se deviam localizar as torneiras, um buraco tapado por sebo, que se abre de cada vez para o efeito através de um furo feito por um pau colocado ali perto. À esquerda, mais um conjunto de prateleiras de madeira, uma velha arca usada para salgar os presuntos e no canto, está claro, a pia onde se esmaga o vinho. Tudo isto, numa divisão apenas com uma pequena janela sem vidros, mas tapada por uma tábua de madeira tosca.

No meio, uma velha e pequena mesa de cozinha, toda em madeira e sem toalha, cujo tampo denota sinais de uso intensivo e marcas de navalhadas, em cima da qual repousa um covilhete com azeitonas, os copos sujos virados do avesso por sobre um pano, e um pão, com uma faca enterrada. Sorrio perante esta visão. Lembro-me do Eça: da cara aterrorizada de Jacinto, o hiper-civilizado, quando chegado à sua coutada serrana se deparou para o jantar com uma mesa quiçá semelhante a esta...
Toda a gente se procura sentar, ou encostar. À volta da mesa nada de cadeiras, apenas um banco de madeira desses usados para a matança do bácoro e uns cepos de lenha, à laia de bancos improvisados, num dos quais me sento.

Vai-se falando. O Ti Manel da Rua de Cima, queixa-se do desperdício que foi esta queda repentina de azeitonas das árvores e conclui que antigamente apanhavam-se muito mais tarde e não era nada disto. O João profere algo acerca da mudança dos tempos e das estações, e principia a falar de umas obras que anda a fazer na sua adega. Já o Chico, informa que vai apanhar todas as suas oliveiras durante a próxima semana, e que não espera ter muito azeite, mas que sabe de fonte segura que o seu vizinho, o Francisco, se safou este ano muito bem. O Quim, por sua vez, lamenta não o poder fazer tão cedo, dado ter que ir a Lisboa ver o filho, internado no hospital. Nisto, todos se juntam e indagam, e falam do filho do Quim, e do sobrinho do Ti António do Outeiro a quem morreu a mulher e depois da filha do Manel, que está na França. Saudades. Afinidades, esperanças, partilha... O João é mais novo... tem um filho que ainda mal entrou para o preparatório. Já o Artur, moço da minha idade, escuta a conversa em silêncio. Discorre-se sobre muitas coisas e nenhuma, e o que ninguém diz é que sabe bem estar ali.
E logo o Zé espeta o pau no buraco do pipo e serve vinho a todos, menos ao Ti Manel, que esse sempre foi mais dado a aguardente. E essa, o Zé tem sempre. E da boa, segundo diz.

Aceitei o copo de vidro já meio baço pelo uso (no qual muita gente teria repúdio de beber fosse o que fosse), e levei-o à boca. Na verdade, nunca gostei muito de um certo excesso de bebida que se ingere nestas ocasiões. Ao princípio parecia-me, ao ver beber em demasia estes homens meio brutos, de mãos rudes e calejadas e roupas ainda sujas do trabalho diário, que se tratava de uma coisa de bêbados, de um qualquer ritual bárbaro de brutos, toscos, arruaceiros... Mas depois aprendi, com o tempo, a ver que havia muito de autenticidade e sinceridade nas palavras que são proferidas nestas alturas, e percebi que a bebida nunca é um motivo em si mesmo, mas sim uma forma de exprimir um sentimento, de estar e partilhar um mesmo espaço, uma mesma conversa. E se acontece alguém exagerar, dá para rir e para brincar, ocasionalmente para umas zangas que passados uns dias já caíram no esquecimento pois toda a gente por aqui vive paredes meias e as zangas não podem durar eternamente... Mas estas pinceladas, como diria um pintor, são também parte do quadro, e fazem também o todo e a beleza da coisa.

Com estas considerações, levei o copo à boca e bebi. E como me soube bem! E a conversa prosseguiu, tocou vários assuntos, tristes, alegres ou banais, e continuou-se a beber e a comer azeitonas muito devagar mas persistentemente, para ajudar a pôr cá fora as palavras. Às vezes, entre uma frase e a outra, fazia-se um silêncio geral, mas ninguém parecia importar-se, ninguém parecia oprimido pelo silêncio e ninguém lamentava a falta de tempo, impaciente. O tempo aqui (penso sempre para mim) é diferente, parecemos ter mais tempo em todos os momentos, sentimo-nos mais capazes de deixar a vida fluir.
Passa uma eternidade. Duas horas, muitos copos de vinho e azeitonas depois (e um chouriço caseiro pelo meio), saímos. Ao abrir a porta da adega, um raio de luz vindo do interior invadiu a escuridão e prolongou-se na noite deserta, e um pouco do nosso calor saiu para confrontar o ar gélido da noite.

Despeço-me de todos, menos do Ti Manel, que me acompanha pois mora perto de mim. Caminhamos lado a lado em silêncio, na noite fria, as botas já velhas e rotas do Ti Manel a pisarem com ruído os paralelos da calçada. Avanço meio tonto, mas sem consequências físicas ou mentais de maior: antes pelo contrário, em paz por dentro, parece-me que aspiro melhor e com mais vivacidade o ar nocturno.
Chegados á sua porta, o Ti Manel virou-se e perguntou:
- Mais um, para a abalidiça?
- Não, Ti Manel, bem haja. A sua patroa está a dormir, e tem a adega por baixo da casa, não vale agora a pena acordá-la por coisa nenhuma. São horas de cama...
- Então, olha, não sei que te faça. Até amanhã!
- Até amanhã, até amanhã!

Dirijo-me para casa, mas não entro. Acendo um cigarro e sento-me perto da soleira da porta, com o simpático rafeiro por companhia. O odor forte a pinho molhado invade-me a alma, e aprecio os barulhos nocturnos, contemplo a sombra escura da serra que paira por sobre os telhados da aldeia. Toda a aldeia dorme (e essa ideia reconforta-me!) e eu e fico a ver as estrelas, brilhantes como nunca vi em mais lado nenhum.

Ficarei assim longo tempo, naturalmente, aproveitando este momento de calma e bonomia e pensando, reflectindo, mas sem complicações em excesso nem desnecessárias violências na alma. Naturalmente. Depois, com a mesma calma, irei deitar-me em paz, assim que sinta o sono infiltrar-se e, paulatinamente, invadir-me os sentidos.

Sem pressas.
. . . . .Sem canseiras.
. . . . . . . Naturalmente...
Luis Beirão

7 comentários:

Claudia Sousa Dias disse...

Muito bom.

Muito bom, mesmo!


Parabens, querido amigo!


um beijo


CSD

Luis Beirão disse...

tem uns anitos, Cláudia, e não é que tenha sido particularmente bem escrito... mas ainda assim, vale pelo espírito...

Gracias.

Anónimo disse...

Também acho que não há estrelas nem céu como o daquela zona...gostei muito do texto...muito mesmo...

AGB

Luis Beirão disse...

AGB,

Pois, um bocadinho de parcialidade de quando em vez...
Mas é óbvio que, colocando isto à prova, rara é a pessoa que não acaba a concordar... que aquele céu e aquelas estrelas são do melhor que há.

Ana Ferreira disse...

Ainda não tinha lido convenientemente o poema, mas sem dúvida que gostei! Gosto de ler e sentir que me perco na poesia, que me consigo transportar e viajar através dela! Consegues isso com a tua forma de escrever! Gostei mesmo! Continua!
Um beijo

Ana Ferreira disse...

Ainda não tinha lido convenientemente o poema, mas sem dúvida que gostei! Gosto de ler e sentir que me perco na poesia, que me consigo transportar e viajar através dela! Consegues isso com a tua forma de escrever! Gostei mesmo! Continua!
Um beijo

Luis Beirão disse...

Ana,

Isto, embora poético, cabe mais dentro da prosa. Mas claro, a ideia é a mesma. Obrigado por teres lido (é bastante extenso, eh eh).

Bjs, Luis


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