11 janeiro 2016

O RUMOR DOS FOGOS


hoje à noite avistei sobre a folha de papel
o dragão em celulóide da infância
escuro como o interior polposo das cerejas
antigo como a insónia dos meus trinta e cinco anos…


dantes eu conseguia esconder-me nas paisagens
podia beber a humidade aérea do musgo
derramar sangue nos dedos magoados
foi há muito tempo
quando corria pelas ruas sem saber ler nem escrever
o mundo reduzia-se a um berlinde
e as mãos eram pequenas
desvendavam os nocturnos segredos dos pinhais


não quero mais perceber as palavras nem os corpos
deixou de me pertencer o choro longínquo das pedras
prossigo caminho com estes ossos cor de malva
som a som o vegetal silêncio sílaba a sílaba o abandono
desta obra que fica por construir… o receio
de abrir os olhos e as rosas não estarem onde as sonhei
e teu rosto ter desaparecido no fundo do mar


ficou-me esta mão com sua sombra de terra
sobre o papel branco… como é louca esta mão
tentando aparar a tristeza antiga das lágrimas




Al Berto

Alberto Raposo Pidwell Tavares nasceu em Coimbra a 11 de Janeiro de 1948 e faleceu em Lisboa a 13 de Junho de 1997. Foi poeta, pintor, editor e animador cultural. Tinha origem inglesa por parte da avó paterna. Com um ano foi viver para o Alentejo. O pai morreu cedo, num desastre de viação, e foi em Sines que passou toda a infância e adolescência, até ir estudar para a Escola António Arroio, em Lisboa. A 14 de abril de 1967, refractário militar, foi para a Bélgica, onde estudou pintura na École Nationale Supérieure d’Architecture et des Arts Visuels em Bruxelas. Acaba por abandonar a pintura em 1971 e dedicar-se exclusivamente à escrita. Viveu numa comunidade de artistas hippies. Regressou a Portugal em 1974 e escreveu o primeiro livro em português, À Procura do Vento num Jardim d'Agosto. O Medo, uma antologia do seu trabalho desde 1974 a 1986, editado pela primeira vez em 1987, veio a tornar-se no seu trabalho mais importante e o seu definitivo testemunho artístico, sendo adicionados em posteriores edições novos escritos do autor, mesmo após a sua morte. Como curiosidade, deixou textos incompletos para uma ópera, um livro de fotografia sobre Portugal e uma «falsa autobiografia». Morreu de um linfoma aos 49 anos.


1 comentário:

Menina Marota disse...

Como é bom ler Al Berto!


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