23 agosto 2015

MULHER CÃO



Ela acendeu a brasa do fogão
anos e anos a fio. Esfregou o soalho
lavou a roupa e os vidros
da janela costurou bainhas
descosidas e levou toalhas a cheirar
a rosmaninho à senhora do andar
de cima. Foi ao quintal buscar hortelã
para a canja e adormeceu ao som
das gargalhadas felizes dos meninos
hoje já todos engenheiros
com a Graça do Senhor. 

Agora está atada ao côncavo
da terra por atilhos
grossos. Ladra à lua
e tudo nela
é carne e sangue. Morde a mão
e dança a valsa
sobre o chão confuso
de algum sonho diluído lá no longe
nos botões do maestro
do coreto aos domingos e feriados. Ela é grossa
e ladra à lua.
Sente o corpo a crepitar
e rasga o coração. Inesperadamente
entre coágulos de sangue
fala línguas
que nunca ninguém lhe ensinou. Está atada
à sangrenta forja
das gramáticas lunares e procura
uma palavra
um nome mesmo que obscuro
e difícil de entender. É uma mulher grossa
e no côncavo do corpo
fala línguas
sem sentido. Deixou secar os coentros
a salsa
e a hortelã. Chama-se cão
e ladra à lua. Vive atada
às chamas que a consomem.


 
José Fanha
(inspirado no quadro do mesmo nome, cuja imagem se pode ver em cima, da autoria de Paula Rego)

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