Ela acendeu a brasa do fogão anos e anos a fio. Esfregou o soalho lavou a roupa e os vidros da janela costurou bainhas descosidas e levou toalhas a cheirar a rosmaninho à senhora do andar de cima. Foi ao quintal buscar hortelã para a canja e adormeceu ao som das gargalhadas felizes dos meninos hoje já todos engenheiros com a Graça do Senhor. Agora está atada ao côncavo da terra por atilhos grossos. Ladra à lua e tudo nela é carne e sangue. Morde a mão e dança a valsa sobre o chão confuso de algum sonho diluído lá no longe nos botões do maestro do coreto aos domingos e feriados. Ela é grossa e ladra à lua. Sente o corpo a crepitar e rasga o coração. Inesperadamente entre coágulos de sangue fala línguas que nunca ninguém lhe ensinou. Está atada à sangrenta forja das gramáticas lunares e procura uma palavra um nome mesmo que obscuro e difícil de entender. É uma mulher grossa e no côncavo do corpo fala línguas sem sentido. Deixou secar os coentros a salsa e a hortelã. Chama-se cão e ladra à lua. Vive atada às chamas que a consomem. José Fanha (inspirado no quadro do mesmo nome, cuja imagem se pode ver em cima, da autoria de Paula Rego)
A poesia do abstracto? Talvez. Mas um pouco de calor, A exaltação de cada momento, É melhor. Quando sopra o vento Há um corpo na lufada; Quando o fogo alteou A primeira fogueira, Apagando-se fica alguma coisa queimada. É melhor! Uma ideia, Só como sangue de problema; No mais, não, Não me interessa. Uma ideia Vale como promessa, E prometer é arquear A grande flecha. O flanco das coisas só sangrando me comove, E uma pergunta é dolorida Quando abre brecha. Abstracto! O abstracto é sempre redução, Secura. Perde; E diante de mim o mar que se levanta é verde: Molha e amplia. Por isso, não: Nem o abstracto nem o concreto São propriamente poesia. A poesia é outra coisa. Poesia e abstracto, não.
Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta. Melancolias, mercadorias, espreitam-me. Devo seguir até o enjôo? Posso, sem armas, revoltar-me? Olhos sujos no relógio da torre: Não, o tempo não chegou de completa justiça. O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera. O tempo pobre, o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse. Em vão me tento explicar, os muros são surdos. Sob a pele das palavras há cifras e códigos. O sol consola os doentes e não os renova. As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase. Vomitar este tédio sobre a cidade. Quarenta anos e nenhum problema resolvido, sequer colocado. Nenhuma carta escrita nem recebida. Todos os homens voltam para casa. Estão menos livres mas levam jornais e soletram o mundo, sabendo que o perdem. Crimes da terra, como perdoá-los? Tomei parte em muitos, outros escondi. Alguns achei belos, foram publicados. Crimes suaves, que ajudam a viver. Ração diária de erro, distribuída em casa. Os ferozes padeiros do mal. Os ferozes leiteiros do mal. Pôr fogo em tudo, inclusive em mim. Ao menino de 1918 chamavam anarquista. Porém meu ódio é o melhor de mim. Com ele me salvo e dou a poucos uma esperança mínima. Uma flor nasceu na rua! Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto. Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu. Sua cor não se percebe. Suas pétalas não se abrem. Seu nome não está nos livros. É feia. Mas é realmente uma flor. Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde e lentamente passo a mão nessa forma insegura. Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se. Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico. É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.