03 junho 2011

DÁDIVA

à minha frente e à minha vista
os castelos desmoronam-se 
diariamente
e eu fico aqui impotente
a ver tudo ruir
não fosse este maldito instinto 
para permanecer
e também decerto acabaria por cair
definitivamente
assim
mil e uma vezes 
beijo o pó deste caminho
e mil e uma vezes 
me levanto combalido
com o peito cansado e oprimido
para continuar a arrastar-me pelas veredas
sem rumo e sem sentido definido
como barco vogando 
ao sabor das tempestades
desconheço já praticamente tudo 
daquilo que sou
todas as minhas saudades
e vontades
e todos os dias me dou
me sacrifico a um deus desconhecido
e a outras mais estranhas divindades
neste mar imenso 
difícil é achar um porto de abrigo
mas afinal nada tenho de que me queixar
pois sou eu quem todos os dias
me talho e lanço ao mar
numa ânsia de novos orientes
e agora em tudo o que digo
inclusive nestas frases reluzentes
raramente encontro motivos ou razões
excepto esta angústia 
que me move e me atravessa
esta estagnação 
disfarçada de urgência ou pressa
com que tomo cafés 
e acendo cigarros todos os dias
o tempo...
o tempo existe para se queimar
para se ver passar
lentamente
e sem grandes espasmos na alma
mas na verdade o meu tempo
não passa 
arrasta-se penosamente...
não suporto mais este meu tempo
esta vida estas frases
este lamento
a urgência é grande pela libertação
e a libertação
impõe-se pelas várias ausências
e são estas e outras violências
que me movem
Cárcere do ser cárcere do pensar não haverá libertação de ti?
ah não nenhuma nem a morte!
teria porventura razão o Campos
mas entretanto adormeço
permaneço
anestesiado 
enterro estes meus prantos
num canto mais recôndito num sótão
numas águas furtadas
e a luz das diferentes manhãs
e o orvalho das diversas madrugadas
continuam a suceder-se impiedosamente
a atravessar este meu corpo inerte
estes meus membros marmóreos
e estes meus olhos vitral...
e é a elas que eternamente me dou
numa dádiva
incessante e imutável
já muito para lá
do próprio ritual...


Luís Beirão
(fotografia: Ana Almeida Santos)


8 comentários:

Professora Ana Soares disse...

Parabéns Luís pelo teu talento.
Beijinhos
Ana Soares

Luis Beirão disse...

Obrigado, Ana.

Bjs

Sara Fidiró disse...

Não só é talento, como CALMA, calma neste mar adentro! Parabéns Luis! Beijinho

Luis Beirão disse...

Obrigado, Sara. Há violências que só o aparentam, mas não o são. E há calmarias plenas de violência.

Bjs

Unknown disse...

Olá Luis Beirão
Este seu poema denota uma uma sensibilidade notável.Como resposta envio-lhe um meu dentro do mesmo registo.

Cumprimentos

Hei-de Rasgar Meu Caminho

Rasguem-me as roupas da alma
esburaquem meu coração
retracem-me o pensamento
diluam meu ser no ácido da aridez
que hei-de obstinar-me em viver
na teimosia da permanência
força da resistência
por ser gente
por ser eu.

Mesmo que o escarninho mundo
não queira
e me atropele a navegação
dos pensamentos
hei-de seguir meu caminho
cuspindo todo o desdém
e até raiva
pelos iluminados desta civilização.
Podem todos atirar-se
à fúria do mundo competitivo
onde a liberdade é refém
dos esgares duma loucura
que se esconde no momento persuasivo
da vitória entre os outros;
os de mente dita escura
sem horizontes prodigiosos
muito para lá do além.

Deitem-me pois na valeta
torturem-me a carne rija
ou matem-me se quiserem
que o meu não é nota certa
ao vergar que se me exija.

Liliana Josué

Luis Beirão disse...

Cara Liliana,

Obrigado pelas suas palavras e pelo seu poema. é um prazer contar com a sua visita.

Anónimo disse...

Gostei muito. Sentido e com garra! Cptºs

Luis Beirão disse...

Lector, ainda bem que gostou.


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