09 março 2009
CARTA DE ÉMILE; CARTA A ÉMILE
Carta de Émile
a minha cidade tinha um rio
donde sobe hoje o cheiro a corações de lodo
e um enflúvio de enxofre e de moscas cercando
as cabeças dos vivos
as pontes
as que vi ruírem nas imagens dos jornais
continuam de pé algures na memória
mas não podíamos sair dali
ir falar ou trocar fosse o que fosse – ou resistir
porque não tínhamos nada para trocar excepto
a fome e a vontade inabalável de viver
nem pão nem balas
nem esperança – e cada um de nós metamorfoseou-se
num cemitério ambulante – cada um de nós
sepultou na alma uma quantidade desumana
de dor e de mortos
tudo se decompõe
apodrece
e as mãos enterram-se no estrume das horas – assim
te escrevo
sentado na parte mais triste do meu corpo
noite dentro
a boca a encher-se-me de ossos – até que irrompa a manhã
e os tiros recomecem
e a cinza do cigarro caia no chão
e em mim cresça uma alegria maligna
(...)
Carta a Émile
a guerra daqui não mata – mas abre fissuras
nos nervos – é o que te posso dizer
deste país que escolhi para definhar
a cidade é um amontoado de lixo de tapumes
de sucata e de casas que se desmoronam
a realidade estragou os olhos das crianças
no fim do corpo em que me escondo espalhou-se
a treva onde
guardo a corola azulínea de tua ausência
e o marulho nítido de um mar que canta
e um calor sísmico nos lábios que beijaste
é-me difícil continuar a escrever-te
o que me destrói – sei que estou fodido
e tu já não és meu
preparo-me para entreabrir os olhos e
deixar escorrer a convulsão oleosa das lágrimas
e das coisas tristes
Al Berto
Imagem: Joakim Buchwald, Valby (Dinamarca)
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5 comentários:
essa é uma carta que toca.
Duas cartas, na verdade Dal ;-).
Bjs
doloroso.
csd
Exacto, Claúdia, bem dolorosas. Amor e ausência, um forte sentimento de perda.
Bjs,
Luis
beijinho para ti.
csd
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