09 outubro 2007

UM POEMA QUASE FICCIONADO


eu vejo-te beber numa fonte com minúsculas
mãos azuis, não, as tuas mãos não são minúsculas
são pequenas, e a fonte é em França
donde tu me escreveste aquela última carta a
que eu respondi e nunca mais soube nada de ti.
tu costumavas escrever poemas sem sentido sobre
ANJOS E DEUS, todos em maiúsculas, e tu
conhecias artistas famosos e grande parte deles
eram teus amantes, e eu escrevi-te de novo, está tudo bem,
continua, entra nas suas vidas, eu não sou ciumento
pois nunca nos conhecemos. estivemos perto um do outro em
New Orleans, pouco tempo, mas nunca nos conhecemos, nunca
nos tocámos, e tu continuaste com os famosos e escreveste
sobre os famosos, e, claro, aquilo que descobriste
é que os famosos estão é preocupados
com a sua fama – não com a jovem e bela rapariga que está
na cama com eles, que lhes dá aquilo, e depois acorda
de manhã para escrever em maiúsculas poemas sobre
ANJOS E DEUS. nós sabemos que Deus está morto, eles
disseram-nos, mas ao ouvir-te deixei de ter certeza.
Talvez fossem as maiúsculas. tu eras uma das melhores
poetas femininas e eu disse aos editores, “ela, publiquem-na,
ela é louca mas é mágica”. “nenhuma mentira no seu fogo”.
eu amo-te como um homem ama uma mulher que nunca tocou,
que só lhe escreve, e guarda dela poucas fotografias. ter-te-ia
amado mais se estivesse sentado num pequeno quarto
a enrolar um cigarro e a ouvir-te mijar no quarto-de-banho,
mas isso nunca aconteceu.
as tuas cartas ficaram cada vez mais tristes.
os teus amantes traíram-te. rapariga, escrevi mais tarde, todos
os amantes traem. mas isso não ajudou. tu disseste
que tinhas um banco onde ias chorar e era junto a uma ponte
e essa ponte era sobre um rio e tu sentavas-te lá todas as noites
e choravas por todos os amantes que te tinham magoado
e esquecido. eu escrevi-te de novo mas nunca
obtive resposta. um amigo escreveu-me e contou-me
do teu suicídio, 3 ou 4 meses depois de acontecer.
se eu te tivesse conhecido teria provavelmente sido injusto contigo
e tu comigo.
foi melhor assim...


Charles Bukowski
Nota: Traduzido livremente a partir do poema inglês original ("An almost made up poem"). Negritos e algumas divisões de linhas da minha responsabilidade, por forma a adaptar ao formato da página. Aconselha-se sempre consulta do original.

3 comentários:

Dalaila disse...

Boa tradução!

e escreveste as cartas que ficaram por escrever

Anónimo disse...

Um poema melancólico e amargo sobre a impossibilidade do amor concretizado no plano físico: "eu amo-te como um homem ama uma mulher que nunca tocou,
que só lhe escreve". E no entanto, "ter-te-ia
amado mais se estivesse sentado num pequeno quarto
a enrolar um cigarro e a ouvir-te mijar no quarto-de-banho". Mas subjacente a tudo este amor etéreo, há o contraste com as relações reais: "choravas por todos os amantes que te tinham magoado e esquecido" e ainda "se eu te tivesse conhecido teria provavelmente sido injusto contigo
e tu comigo.
foi melhor assim..."
Penso que existe em muito de nós este "mito romântico".
Desculpa a a dissecação poética.
L.D.

Luis Beirão disse...

L.D.,

Sim, e na verdade como vês ela não é, pelos padrões morais, propriamente um anjo (tanto mais que esteve e envolveu-se com vários desses que ele designa por "famosos". Nesse sentido, seria mais o oposto. Ele é que, pelo amor, é que a sublima, da mesma forma que ela sente, apesar de tudo o que se desenrola, necessidade de escrever "poemas sobre ANJOS E DEUS, todos em maiúsculas".

Bjs,
Luis


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