26 novembro 2016

OS PASSOS DISTANTES (LOS PASOS LEJANOS)


O meu pai dorme. O seu semblante augusto
parece um coração aprazível;
está agora tão doce...
se há nele algo de amargo, serei eu.

Há solidão no lar; reza-se,
e não há notícias dos filhos hoje.
O meu pai desperta, ausculta
a fuga para o Egipto, o estancado adeus.
Está agora tão perto;
se há algo nele de distante, serei eu.

E a minha mãe passeia por aí nas hortas,
saboreando um sabor já sem sabor.
Está agora tão suave,
tão alada, tão saída, tão amor

Há solidão no lar, sem bulício,
sem notícias, sem verde, sem infância.
E se há algo quebrado nesta tarde,
e que baixa e que range,
são dois velhos caminhos brancos, curvos.
Por eles vai o meu coração a pé.


Cesar Vallejo


Nota: Nascido em 1892 em Santiago de Chuco (norte do Peru) é considerado o maior poeta do seu país e o mais influente poeta hispano-americano a par de Pablo Neruda. Neto de mulheres indígenas e mestiço, a sua vida foi marcada pela pobreza, desamparo e perseguição. O pai tinha um emprego razoável, mas a família era numerosa. Com 18 anos ingressa na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Trujillo, curso que não conclui por falta de dinheiro. Subsistiu como tutor do filho de um fazendeiro e como assistente na administração de uma fazenda de açúcar. Em 1915, torna-se professor, mas tem que mudar-se para Lima por problemas amorosos. Mais tarde director numa escola, conhece o poeta anarquista Manuel Prada e publica, "Los Heraldos Negros", bem acolhido pela crítica. Demitido em 1920 (28 anos), de visita à sua cidade, é preso por 3 meses, injustamente acusado de instigar uma confusão na qual um agente da autoridade foi baleado. Em 1922 publica “Trilce", escrito no cárcere, com uma tiragem de apenas 200 livros (cada um custou-lhe mais que o lucro total na venda). É novamente demitido do novo emprego de professor e decide, com 38 anos, mudar-se para Paris, onde irá conhecer artistas como Artaud, Cocteau ou Picasso. Consegue emprego numa gráfica três anos depois, tendo quase morrido de fome. Mais tarde obtém uma bolsa de estudos do governo espanhol, para terminar os estudos de Direito. Interessa-se pelo marxismo, e vai por 3 vezes à União Soviética. Passa a viver com Georgette Philipart até ser preso e expulso do país, para se exilar em Espanha em 1930. Em 1931 regressa, apenas com uma mala de roupa, e encontra o apartamento destruído pela polícia. Engaja-se mais tarde na causa republicana na Guerra Civil espanhola, escrevendo propaganda e dando aulas de doutrina política. Chocado com os horrores da guerra, em visita a Madrid, escreveu o livro militante "España, aparta de mí este caliz", que não foi publicado em vida, e o livro de poesia "Sermón de la barbarie". Casou-se com a companheira em 1934, mas a situação económica foi sempre má, pelo que quando morreu em Paris devido a uma febre misteriosa (4 anos depois, com apenas 46 anos), era muito pobre. Nunca mais voltou ao Peru.

Tradução de minha autoria, aqui fica o original em espanhol:


Mi padre duerme. Su semblante augusto
figura un apacible corazón;
está ahora tan dulce...;
si hay algo en él de amargo, seré yo.

Hay soledad en el hogar; se reza;
y no hay noticias de los hijos hoy.
Mi padre se despierta, ausculta
la huída a Egipto, el restañante adiós.
Está ahora tan cerca;
si hay algo en él de lejos, seré yo.

Y mi madre pasea allá en los huertos,
saboreando un sabor ya sin sabor.
Está ahora tan suave,
tan ala, tan salida, tan amor.

Hay soledad en el hogar sin bulla,
sin noticias, sin verde, sin niñez.
Y si hay algo quebrado en esta tarde,
y que baja y que cruje,
son dos viejos caminos blancos, curvos.
Por ellos va mi corazón a pie.



21 novembro 2016

CANÇÃO (SONG)


O peso do mundo
       é o amor.
Sob o fardo 
       da solidão,
sob o fardo 
       da insatisfação

       o peso,
o peso que carregamos
       é o amor.

Quem o pode negar?
      Em sonhos,
toca-nos 
      o corpo,
em pensamentos
      constrói
o milagre,
      na imaginação
angustia-se
      até nascer
humano

- sai para fora do coração
      ardendo com pureza -
pois o fardo da vida
      é o amor,
mas nós carregamos o peso
      fatigados
e assim precisamos de descansar
nos braços do amor
      finalmente,
precisamos de descansar nos braços 
      do amor.

Nenhum descanso
      sem amor,
nenhum sono
      sem sonhos
de amor -
      quer eu esteja louco ou com frio,
obcecado por anjos
      ou máquinas,
o último desejo
      é o amor
- não pode ser amargo,
      não pode negar,
não pode ser contido
      se negado:

o fardo é demasiado pesado

      - é preciso dar
para nada retornar
      como pensamentos
dados
      na solidão
em toda a excelência
      do seu excesso.

Os corpos quentes
      brilham juntos
na escuridão,
      a mão move-se
para o centro
      da carne,
a mão treme
      de felicidade
e a alma sobe 
      feliz até aos olhos -

sim, sim,
      era o que
eu queria,
      o que eu sempre quis,
o que eu sempre quis,
      regressar
ao corpo
      onde nasci.


Allen Ginsberg
(tradução da minha autoria, for english version click HERE)

Imagem: Estátua "O beijo" do escultor romeno Constatin Brancusi (1908)

Nota: Nascido em Newark, New Jersey a 3 Junho 1926, Ginsberg foi um poeta americano da geração beat, que serviu de inspiração para a personagem Alvah dos “Vagabundos da Verdade” de Jack Kerouac. Foi uma criança complicada assombrada pela paranóia da sua mãe. Na escola secundária, encanta-se com a obra Walt Whitman, embora acabe por cursar Direito na Univerdade de Columbia onde faz amizade com um grupo de jovens insubmissos (entre os quais Lucien Carr e Kerouac), interessados em drogas, sexo e literatura. Ginsberg acreditava que seguiam em direcção a uma grande visão poética, que ele e Kerouac chamavam New Vision. Experimentou anfetaminas e canábis e começou a frequentar bares gay, iniciando um relacionamento com Neal Cassady, que vistava em Denver e S. Francisco. Assumindo um estilo de vida bizarro, aos 29 anos, já tinha escrito muita poesia, mas quase nada publicado. Ganhou popularidade a partir de 55 com o seu poema “Uivo” (considerado por muitos, obsceno e pornográfico). Foi o livro de poesia mais vendido da história dos EUA, ultrapassando um milhão de exemplares, seguido por vários outros poemas importantes. Ginsberg viaja pelo mundo, descobre o budismo e apaixona-se por Peter Orlovsky (seu companheiro pelo resto de vida, embora a relação não fosse exclusiva). No início dos anos 1960, enquanto sua celebridade crescia, Ginsberg lança-se na cena hippie, ajuda Timothy Leary a divulgar o LSD e participa em muitos eventos (ex: o “Human Be-In”, S. Francisco, 1967). Foi também figura-chave nos protestos contra a guerra no Vietname, em 1968. Após conhecer o lama tibetano Trungpa Rinpoché, aceita-o como seu guru pessoal e com a poeta Anne Waldman, cria uma escola de poesia. Participando sempre em eventos multiculturais até à sua morte a 5 Abril 1997, entre seus maiores admiradores, estavam os múiscos Jim Morrison (The Doors), os The Clash e os The Cult por exemplo. Foi um dos expoentes do movimento beat, grupo de autores que trabalhavam com poesia, prosa e consciência cultural. A sua escrita oscilava entre o mantra e o sexo explícito, o sagrado e o profano, o espiritual e o material. Transitava entre dois mundos: o da marginalidade e o da cultura erudita. A utopia de Ginsberg era a de uma sociedade harmoniosa, onde coubessem os loucos e todos os contextos estranhos.


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