26 agosto 2016

SAUDADES DO FUTURO


Martelam-me ainda a cabeça
todos esses grandes pequenos projectos
que nunca abracei
e já me revolvem a mente
todos esses pequenos grandes projectos
que eventualmente
virei a abraçar
hesito entre a terra
e a imensidão do céu
águia adiada
mas planta inútil mera trepadeira
doí-me o coração
pelos voos que não fiz
e pelas raízes que não consolidei
pelas energias que não drenei
e pelas alturas que nunca alcancei
em todo o caso forço-me a ser
de qualquer modo
o que não sou
fica sempre a saudade
do que sou agora
é dessa matéria que de facto sou feito
uma saudade opressora
permanente
por antecipação
saudade da terra onde agora bebo
e do horizonte onde me perco
e saudade de ambos
e saudade de tudo
ao fim e ao cabo
do que fui
do que sou
do que serei
há que despir-me de mim
para poder ser eu
e é esse talvez o maior dilema
trocar de corpo
a cada mutação
sou
e já tenho saudades do que sou
já me vou despedindo de mim
numa permanente nostalgia
e por isso não quero deitar-me
pois sei que pela manhã
já não existirei
mas acabarei por deitar-me
forçosamente
por isso me despeço
com estas palavras
gravadas assim na memória do tempo
na certeza porém
de que ao amanhecer
olharei estas frases
como as de um estranho
e sobre elas verterei lágrimas
cheio de saudades de mim...



Luís Beirão


13 agosto 2016

UMA VIDA DE CÃO


Não
não é a poesia caixa de música
ou a poesia piolho místico enterrado no sebo destes dias
ou qualquer outra
que podem dissolver a tua alma
tão problemática
no vinho da beatitude

Ah
o «mistério» da poesia a poesia
técnica da confusão
a capelista poética e os primeiros fregueses
ainda a medo ainda receosos
de te pedirem a Dor em alfinetes que não tenhas
logo ali à mão

E quando dizes «Poesia» eu tenho nojo
aquele nojo violento que me dá
o olhar furtivo a atenção desatenta
dos que se demoram nos lavabos nas salas dos cinemas
de mãos distraídas procurando
a solução da noite

Instalaram-se em ti
a mesma contracção suspeita
a mesma hipocrisia o mesmo sobressalto
a mesma curva obscena
que o olhar descreve
goza
e disfarça

Quando dizes «Poesia» dizes medo
dizes família tradição classe
e a vida de cão que te esperava
e que é hoje a tua vida a tua «transcendente»
vida de cão

*
Ensinaram-te palavras que pareciam
prontas a derrotar quem as ouvisse
ensinaram-te gestos para elas
e a tal ponto te humilharam
que te puseram de pé
limpo
inteligente
e aprumado

Pronto a seguir
seguiste
e agora estás aqui pois claro
angustiado e iludido
mas deliciado

*
Até aos útlimos arcanos
cafés e leitarias
seguiste André Breton
ou a sombra dele
e a aventura mental que procurava
um sinal exterior
um estilhaço vivo do acaso
a Nadja lisboeta que salvasse
ou a noite ou a vida
acabou em «bons» poemas «maus» poemas
em palavras e palavras

E coberto de palavras enterrado
numa terra de murmúrios de gemidos
teu coração já nada faz mover
senão moinhos de palavras
e «a dor é grande» dizes tu
«mas sublime»

*
Mas não sou eu que te lamento
Os teus mitos esperam-te
já impacientes

Agora põe-te a andar
agora passa por cá daqui a uns anos

Talvez me encontres
talvez possa fazer qualquer coisa por ti
qualquer coisa simples
quase inútil
quase ridícula
          oferecer-te uma sílaba
          um conselho
          um cigarro



Alexandre O'Neill

Nota:  Poeta nascido a 19 de Dezembro de 1924, em Lisboa. O pai era funcionário bancário, de ascendência irlandesa. Sobretudo auto-didacta, fez os estudos de liceu e chegou a frequentar o Curso de Pilotagem na Escola Náutica. Saiu de casa aos 20 anos e tornou-se escriturário na Caixa de Previdência dos Profissionais do Comércio. Dava mostras de estar a par do movimento Surrealista que se disseminava pela Europa. Alguns dos seus amigos nas tertúlias da Pastelaria A Mexicana tinham estado em Paris, onde conheceram André Breton. Com alguns deles, ligados à escrita e artes plásticas, muitos vindos do curso de Belas Artes na António Arroio (como Cesariny, António Pedro, Mário Domingues e Moniz Pereira, para citar alguns), O'Neill esteve na fundação do Grupo Surrealista de Lisboa, o grupo que introduziu o surrealismo em Portugal. A primeira e única exposição do grupo, em 1949, estve rodeada de polémica. Desde aí, foi alvo de vigilância pelo regime de Salazar. Chegou a estar preso em Caxias. A PIDE negou-lhe o passaporte, para ir ter em Paris com Nora Mitrani (socióloga e escritora surrealista búlgara por quem se apaixonou), facto que o poeta nunca esqueceu e deixou explícito no seu conhecido poema Um Adeus Português. Apesar da sua afirmação como poeta com o livro No Reino da Dinamarca (1958), viveu sobretudo da sua actividade como redactor publicitário (entre os seus famosos slogans conta-se o conhecido Há mar e mar, há ir e voltar!). Casou por 2 vezes e teve 2 filhos, um de cada casamento. Dividiu os últimos dias entre Lisboa e Constância, no Ribatejo, onde hoje se encontra uma biblioteca com o seu nome que conserva parte do seu espólio por doação do próprio. Faleceu em Lisboa a 21 de Agosto de 1986, com 61 anos, devido a um acidente vascular cerebral.

03 agosto 2016

TERRA 7


Onde ficava o mundo?
Só pinhais, matos, charnecas e milho
para a fome dos olhos.
Para lá da serra, o azul de outra serra e outra serra ainda.
E o mar? E a cidade? E os rios?
Caminhos de pedra, sulcados, curtos e estreitos,
onde chiam carros de bois e há poças de chuva.
Onde ficava o mundo?
Nem a alma sabia julgar.
Mas vieram engenheiros e máquinas estranhas.
Em cada dia o povo abraçava um outro povo.
E hoje a terra é livre e fácil como o céu das aves:
a estrada branca e menina é uma serpente ondulada
e dela nasce a sede da fuga como as águas dum rio.



Fernando Namora 


Nota:  Poeta nascido a 15 de Abril de 1919 em Condeixa-a-Nova e falecido em Lisboa a 31 de Janeiro de 1989, com 69 anos. Foi, além de escritor, médico, exercendo a actividade em muitas zonas isoladas do país, como a Beira Interior e o Alentejo, numa altura em que a figura do médico rural trilhava os caminhos de aldeias remotas. Este percurso veio a influenciar a sua obra, incluindo o livro-poema "Terra" no qual de insere este poema, que iniciou a colecção poética de 10 volumes do Novo Cancioneiro, que marca o advento do neo-realismo em Portugal . Diplomou-se em 1942 em Coimbra, fazendo parte da Geração de 40 (como os amigos Mário Dionísio, Carlos de Oliveira e Joaquim Namorado). Aldeias como Tinalhas, Monsanto e Pavia marcaram o seu trajecto, até que em 1951 (32 anos) se estabeleceu em Lisboa. A sua obra sofreu também influências de Afonso Duarte e do grupo ligado à Presença. Outro livro de poesia conhecido da sua autoria foi Marketing, mas foi mais conhecido como romancista, autor dos famosos Um Sino na Montanha e Retalhos da Vida de um Médico (adaptado ao cinema e à televisão entre as décadas de 60 e 80). Chegou a ser posposto para o Nobel em 81. A casa onde nasceu em Condeixa é actualmente a Casa Museu Fernando Namora, aberta ao público em 1990. Dá também nome a uma Escola Secundária da vila.

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