22 fevereiro 2008

O TEJO É MAIS BELO...


O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia

Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.



Alberto Caeiro

Nota: É caso para dizer, no seguimento deste poema belíssimo, que ainda bem. Ainda bem que (ainda, por enquanto) há rios de aldeias que não fazem pensar em nada. Ainda bem que há rios mais livres e maiores, sendo mais pequenos.

20 fevereiro 2008

EVENTOS: QUARTAS MALDITAS

Poemas de mão em mão

Hoje, dia 20 de Fevereiro
Local: Clube Literário do Porto
Início: 22 h


As Quartas MalDitas são uma tertúlia poética mensal aberta ao público que quiser assistir ou participar, que têm lugar nas terceiras Quartas de cada mês.

Procuram-se seguir temas ou motes à volta dos quais gira a poesia, e convidar sempre que possível um especialista ou entendido na área temática escolhida para intervir um pouco sobre o assunto. Geralmente, há também intervenções musicais. Desta vez o tema são as mãos na poesia.
**
Residentes:
Anthero Monteiro (coordenador); António Pinheiro; Diana Devezas; Joana Padrão; Luís Carvalho; Mário Vale Lima; Marta Tormenta; Rafael Tormenta.
Convidado: Carlos Andrade (voz e guitarra acústica).

Para mais informações clicar aqui

12 fevereiro 2008

A CARTA DA PAIXÃO


Esta mão que escreve a ardente melancolia da idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo
aberta de têmpora a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração.
A demência lavra a sua queimadura
desde os seus recessos negros onde se formam as estações
até ao cimo, nas sedas que se escoam
com a largura fluvial da luz e a espuma,
ou da noite e as nebulosas e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia:
a língua alumia-se:
O mel escurece dentro da veia jugular
talhando a garganta.
Nesta mão que escreve afunda-se a lua,
e de alto a baixo, em tuas grutas obscuras,
essa lua tece as ramas de um sangue
mais salgado e profundo.

E o marfim amadurece na terra como uma constelação.
O dia leva-o, a noite traz para junto da cabeça:
essa raiz de osso vivo.
A idade que escrevo
escreve-se num braço fincado em ti,
uma veia dentro da tua árvore.
Ou um filão ardido de ponto a ponta
da figura cavada no espelho.
Ou ainda a fenda na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa desarrumação das imagens.
E trabalha em ti o suspiro do sangue curvo,
um alimento violento
cheio da luz entrançada na terra.
As mãos carregam a força desde a raiz dos braços
a força manobra os dedos ao escrever da idade,
uma labareda fechada,
a límpida ferida que me atravessa
desde essa tua leveza sombria como uma dança
até ao poder com que te toco.

A mudança.
Nenhuma estação é lenta
quando te acrescentas na desordem,
nenhum astro é tao feroz agarrando toda a cama.
Os poros do teu vestido.
As palavras que escrevo
correndo entre a limalha.
A tua boca como um buraco luminoso, arterial.
E o grande lugar anatómico
em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz,
o silêncio alimenta-se fixamente
de mel envenenado.
E eu escrevo-te toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados,
as noites que crescem nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce:
eu torço-a entre os braços.
E há roupas vivas, o imóvel relâmpago das frutas.
O incêndio atrás das noites
corta pelo meio o abraço da nossa morte.
Os fulcros das caras um pouco loucas engolfadas,
entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia
como o aroma entre os tendões da madeira fria.
És uma faca cravada na minha vida secreta.
E como estrelas duplas
consanguíneas,
luzimos de um para o outro
nas trevas.


Herberto Hélder

Nota: Como sempre, as divisões de versos foram alteradas para ajustar ao que o espaço permitia, e também em parte ao ritmo que à minha leitura pessoal parecia mais conveniente ou mais propício à minha compreensão. Aconselha-se por isso consulta do original, para saber as divisões exactas usadas pelo autor. Também os realces são da minha responsabilidade.


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