24 outubro 2007

A SÓS COM TODA A GENTE


A carne cobre os ossos
e colocaram uma consciência
algures
e por vezes uma alma,
e as mulheres partem
copos contra as paredes
e os homens bebem
demasiado
e ninguém encontra
aquilo
mas continuamos
a procurar
arrastando-nos para dentro e para fora
das camas.

a carne cobre
o osso
e a carne procura
por mais do que
carne.

não há mesmo hipótese
alguma:
estamos todos aprisionados
por um destino
singular.

ninguém nunca encontra
aquilo.

as lixeiras das cidades enchem-se
os ferros velhos enchem-se
os hospícios enchem-se
os hospitais enchem-se
os cemitérios enchem-se

...mas nada mais
se enche.


Charles Bukowski

Nota: Tradução livre a partir do poema original em inglês "Alone with everybody". Sei que tenho postado muito Bukowski, mas estas escolha em particular, creio eu, vale a pena.

18 outubro 2007

QUE CULPA TERÃO AS ONDAS...


...Que culpa terão as ondas
Dos movimentos que façam?
São os ventos que as impelem
E sulcos profundos traçam.
Aos ventos quem lhes ordena
Que rasguem rugas no mar?
São as nuvens inquietas
Que os não deixam sossegar.
E as nuvens, almas de névoa,
Porque não param, coitadas?
É que as asas das gaivotas
As trazem desafiadas.
Mas as asas das gaivotas
O cansaço há-de detê-las!
Juraram buscar descanso
Nas pupilas das estrelas.
E como as estrelas estão altas
E não tombam nem se alcançam,
As asas das pobrezinhas
Baldamente se cansam
Baldamente se cansam,
Baldamente palpitam!
As nuvens, por fatalismo,
Logo com elas se agitam;
Os impulsos que elas dão
Arrastam as ventanias;
As vagas arfam nos mares
Em macabras fantasias

Assim as almas inquietas
Prisioneiras de ansiedades,
Mal que se erguem da terra,
Naufragam nas tempestades!

Reinaldo Ferreira
.
Nota: Pouco conhecida pela maioria das pessoas, a sua obra foi publicada a título póstumo (faleceu com 37 anos). No entanto, a ele devemos letras de canções sobejamente conhecidas, como "Uma casa portuguesa" e "Menina dos olhos tristes". A título de curiosidade, um dos livros que tinha planeados chamava-se "Um voo cego a nada". Não resisto a citar a sua "Receita para fazer um herói":

"Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.
.
Serve-se morto."

15 outubro 2007

EVENTOS - SESSÃO Nº 7 DAS QUARTAS MalDitas













Data: Quarta, 17 de Outubro de 2007, pelas 22 horas
Local: Clube Literário do Porto (na ribeira, entre o Mercado da Bolsa e a Alfândega)
Evento: Tributo a Miguel Torga

Convidado: Miguel Carvalho (jornalista da Visão) - "Geografia sentimental de Torga" (conversa e passagem de imagens de locais e paisagens conotados com o poeta)
Leitura de poemas pelos residentes: Anthero Monteiro (coordenador), Diana Devezas, Joana Padrão, Mário Vale Lima e Rafael Tormenta e, claro, eu próprio.
Música: Carlos Andrade (guitarra acústica e voz).
Espaço para intervenção livre do público.

Entrada livre. Apareçam, se puderem!
para mais informações: http://www.clubeliterariodoporto.co.pt/

13 outubro 2007

MACERAÇÃO



Pisa os meus versos, Musa insatisfeita!
Nenhum deles te merece.
São frutos acres que não apetece
Comer.
Falta-lhes génio, o sol que amadurece
O que sabe nascer.

Cospe de tédio e nojo
Em cada imagem que te desfigura.
Nega esta rima impura
Que responde de ouvido.
Denuncia estas sílabas contadas,
Vestígios digitais do evadido
Que deixa atrás de si as impressões marcadas.

E corta-me de vez as asas que me deste.
Mandaste-me voar;
E eu tinha um corpo inteiro a recusar
Esse ímpeto celeste...


Miguel Torga

Nota: Nada mais justo, no ano em que se comemora o centenário do nascimento deste poeta transmontano.

09 outubro 2007

UM POEMA QUASE FICCIONADO


eu vejo-te beber numa fonte com minúsculas
mãos azuis, não, as tuas mãos não são minúsculas
são pequenas, e a fonte é em França
donde tu me escreveste aquela última carta a
que eu respondi e nunca mais soube nada de ti.
tu costumavas escrever poemas sem sentido sobre
ANJOS E DEUS, todos em maiúsculas, e tu
conhecias artistas famosos e grande parte deles
eram teus amantes, e eu escrevi-te de novo, está tudo bem,
continua, entra nas suas vidas, eu não sou ciumento
pois nunca nos conhecemos. estivemos perto um do outro em
New Orleans, pouco tempo, mas nunca nos conhecemos, nunca
nos tocámos, e tu continuaste com os famosos e escreveste
sobre os famosos, e, claro, aquilo que descobriste
é que os famosos estão é preocupados
com a sua fama – não com a jovem e bela rapariga que está
na cama com eles, que lhes dá aquilo, e depois acorda
de manhã para escrever em maiúsculas poemas sobre
ANJOS E DEUS. nós sabemos que Deus está morto, eles
disseram-nos, mas ao ouvir-te deixei de ter certeza.
Talvez fossem as maiúsculas. tu eras uma das melhores
poetas femininas e eu disse aos editores, “ela, publiquem-na,
ela é louca mas é mágica”. “nenhuma mentira no seu fogo”.
eu amo-te como um homem ama uma mulher que nunca tocou,
que só lhe escreve, e guarda dela poucas fotografias. ter-te-ia
amado mais se estivesse sentado num pequeno quarto
a enrolar um cigarro e a ouvir-te mijar no quarto-de-banho,
mas isso nunca aconteceu.
as tuas cartas ficaram cada vez mais tristes.
os teus amantes traíram-te. rapariga, escrevi mais tarde, todos
os amantes traem. mas isso não ajudou. tu disseste
que tinhas um banco onde ias chorar e era junto a uma ponte
e essa ponte era sobre um rio e tu sentavas-te lá todas as noites
e choravas por todos os amantes que te tinham magoado
e esquecido. eu escrevi-te de novo mas nunca
obtive resposta. um amigo escreveu-me e contou-me
do teu suicídio, 3 ou 4 meses depois de acontecer.
se eu te tivesse conhecido teria provavelmente sido injusto contigo
e tu comigo.
foi melhor assim...


Charles Bukowski
Nota: Traduzido livremente a partir do poema inglês original ("An almost made up poem"). Negritos e algumas divisões de linhas da minha responsabilidade, por forma a adaptar ao formato da página. Aconselha-se sempre consulta do original.

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