26 fevereiro 2007

FÁBULA DIÁRIA


sordidez diária
diária fábula inconclusa
onde a gente se afunda cada vez mais
e mais
e mais
e mais...
pequenez quotidiana
tudo parado
tudo estagnado
tudo resumido
condensado
impregnado
anestesiado
atolado
afogado
inundado
num lodaçal permanente
de desesperança
de desilusão
e de inevitabilidades
que nos aguardam a cada esquina
e nos perseguem
e nos agarram
e nos prendem
e nos amarram
e não nos deixam esbracejar.
não há como fugir.
há uma longa lista de infracções
e impossibilidades
e não se pode transgredir.
não há prisões
há a grande prisão de todos os dias
um imenso espaço físico onde nos podemos mover
mas sem nenhum espaço mental
senão o que se reduz a esta estreita faixa
por onde diariamente caminhamos.
sinto-me a enlouquecer.
devagarinho.
noutros momentos penso
estou afinal lúcido demais.
resta-me o consolo de uma infância
e dos sonhos que a acompanharam
de uma criança aparentemente frágil
a que por vezes me agarro desesperadamente
onde tento buscar o meu alimento
o meu alento de todos os dias.
não encontro palavras para o que procuro exprimir
nem para mim mesmo
para auto-consumo
e auto-digestão.
ocorre-me a palavra angústia.
agonia.
desfalecimento contínuo.
estagnação.
pântano.
modorra.
masmorra.
cárcere.
apetece-me gritar
andar nu pelas ruas da cidade.
bater em alguém até que a minha mão fique a sangrar.
ou alguém bater-me
até eu me arrastar para um canto
e aí possa desfalecer
sem conseguir pensar em mais nada.
preciso de loucura a temperar a minha existência
sentir de algum modo que sou mesmo livre
que o meu espírito é maior que todas estas pequeníssimas coisas
que toda esta mesquinhez que me rodeia.
ocorre-me que nem sempre foi assim.
ou então as coisas sempre foram deste modo
e eu permanentemente
bêbado de vinho
de alegria
de cerveja
de amor
de whisky
de calor humano
inebriado pelo sonho ou pelo mosto
nunca olhei a direito para elas...
a minha linguagem atropela-se.
atropela-me.
não consigo fluir como um rio.
disperso-me em todos os sentidos
sem me concentrar em nenhum.
não é uma dispersão criativa
mas uma dispersão sem tino nem nexo
apenas e tão-só uma vontade incontrolável
de me espalhar pelos quatro cantos do cosmos
desfazer-me em milhentas partículas.

até não conseguir reconhecer-me.

até deixar de me ouvir a pensar.

até não pensar

(nunca mais)

em mais nada...


Luis Beirão

23 fevereiro 2007

A NOITE DISSOLVE OS HOMENS


A noite
desceu. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tão pouco os rumores que outrora me perturbavam.

A noite desceu. Nas casas, nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos, a noite espalhou o medo e a total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda, sem esperança...
Os suspiros acusam a presença negra que paralisa os guerreiros.

E o amor não abre caminho na noite.
A noite é mortal, completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens, diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias, apagou os almirantes cintilantes!
nas suas fardas.

A noite anoiteceu tudo... O mundo não tem remédio...
Os suicidas tinham razão.

AURORA, entretanto eu te diviso,
ainda tímida, inexperiente das luzes que vais ascender
e dos bens que repartirás com todos os homens.

Sob o húmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes,
vapor róseo, expulsando a treva noturna.

O triste mundo fascista se decompõe ao contacto de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram mas que avançam
na escuridão
como um sinal verde e peremptório.

Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.

O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes
se enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez, uma inocência, um perdão
simples e macio...

HAVEMOS DE AMANHECER.
O mundo se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces,
AURORA.

Carlos Drummond de Andrade

21 fevereiro 2007

CHUVA


As coisas vulgares que há na vida
Não deixam saudades
Só as lembranças que doem
Ou fazem sorrir

Há gente que fica na história
da história da gente
e outras de quem nem o nome
lembramos ouvir

São emoções que dão vida
à saudade que trago
Aquelas que tive contigo
e acabei por perder

Há dias que marcam a alma
e a vida da gente
e aquele em que tu me deixaste
não posso esquecer

A chuva molhava-me o rosto
Gelado e cansado
As ruas que a cidade tinha
Já eu percorrera

Ai... meu choro de moça perdida
gritava à cidade
que o fogo do amor sob chuva
há instantes morrera

A chuva ouviu e calou
meu segredo à cidade
E eis que ela bate no vidro
Trazendo... a saudade....

Letra da canção "Chuva", cantada por Mariza

14 fevereiro 2007

POEMA DO AMOR

Este é o poema do amor.

O poema que o poeta propositadamente escreveu
só para falar de amor,

de amor,

de amor,

de amor,

para repetir muitas vezes amor,

amor,

amor,

amor.

Para que um dia, quando o Cérebro Electrónico
contar as palavras que o poeta escreveu,

tantos que,

tantos se,

tantos lhe,

tantos tu,

tantos ela,

tantos eu,

conclua que a palavra que o poeta mais vezes escreveu
foi amor,

amor,

amor.

Este é o poema do amor.

António Gedeão

Nota: não sei bem porquê (e vá-se lá saber, eh eh), pareceu-me um bom dia para este poema aqui.


12 fevereiro 2007

GRITO


Cedros, abetos,
pinheiros novos.
O que há no tecto
do céu deserto,
além do grito?
Tudo que e' nosso.

São os teus olhos
desmesurados,
lagos enormes,
mas concentrados
nos meus sentidos.
Tudo o que é nosso
é excessivo.

E a minha boca,
de tão rasgada,
corre-te o corpo
de pólo a pólo,
desfaz-te o colo
de espádua a espádua,
são os teus olhos,
depois o grito.

Cedros, abetos,
pinheiros novos.
É o regresso.
É no silêncio
de outro extremo
desta cidade
a tua casa.
É no teu quarto
de novo o grito.

E mais nocturna
do que nunca
a envergadura
das nossas asas.
Punhal de vento,
rosa de espuma:
morre o desejo,
nasce a ternura.
Mas que silêncio
na tua casa.

David Mourão-Ferreira

08 fevereiro 2007

VARINA


Eu mudei de pincel e de paleta
— embora seja a mesma a tinta com que escrevo —
mas mudei, que, de repente,
surgiste diante de mim.
Não é que me perturbes, mas eu sinto
que alguma coisa me comove ao ver-te.
Não é que te examine, porque sei
que me é quase impossível,
que me é mesmo impossível descrever-te.
A tua história, sim? A história que se repete
e é sempre nova porque há sempre gente
que nunca a ouviu
ou que não a quis ouvir.
O cais viu-te nascer!
Corrias, loucamente, pelas rectas
intermináveis dos paredões
de cimento e granito,
e em caixotes com cheiro de sardinha
fazias tabogan das linguetas
— o tabogan dos parques infantis
que não pudeste ver.
Assim, faminta e seminua
mas livre como os peixes
fizeste-te mulher!
Depois foi o correr das ruas da cidade,
enrouquecendo a gritar:
— "Quem merca os camarões" ...
Depois um que voltou da Terra Nova
e te olhou como fera sequiosa
de carne,
quando o lugre, ao chegar, entrou na doca.
Depois o inevitável!
O luar...
A Senhora d'Agonia...
A quentura de Agosto...
E, então,
não era só o peso da canastra,
era o peso dum filho
e a fome de dois para matar,
até que o lugre voltasse
e se esquecesse
o calvário da luta...
Um dia no intervalo da campanha
o sexo falou mais alto
e o coração calou.
Foste dum outro homem e, depois,
de dois,
de três.
Quando ele voltou
encontrou-te perdida
e tu perdeste-o.
Hoje, num outro porto, ainda gritas
o teu pregão.
Quando um homem te encontra fora de horas,
para ele foi sempre um bom encontro...
e. . . "até mais ver" ...
Vês! Eu sei a tua história...
(Há tantos que a não sabem!)
E, no entanto,
Dum homem só ou de cem,
num porto do meu país ou num porto da Islândia
Tu surgiste aos meus olhos
como a mesma

MULHER.

Álvaro Feijó

Em epoca de discussao sobre a despenalizacao do aborto, deixo-vos com esta. Sem mais legendas.



01 fevereiro 2007

O POETA E A LUA


Em meio a um cristal de ecos,
O poeta vai pela rua,
Seus olhos verdes de éter
Abrem cavernas na lua.
A lua volta de flanco
Eriçada de luxúria.
O poeta, aloucado e branco
Palpa as nádegas da lua.
Entre as esfera nitentes
Tremeluzem pelos fulvos.
O poeta, de olhar dormente
Entreabre o pente da lua.
Em frouxos de luz e água,
Palpita a ferida crua.
O poeta todo se lava
De palidez e doçura.
Ardente e desesperada,
A lua vira em decúbito,
A vinda lenta do espasmo
Aguça as pontas da lua.
O poeta afaga-lhe os braços,
E o ventre que se menstrua,
A lua se curva em arco
Num delírio de luxúria.
O gozo aumenta de súbito
Em frémitos que perduram,
A lua vira o outro quarto
E fica de frente, nua.
O orgasmo desce do espaço
Desfeito em estrelas e nuvens,
Nos ventos do mar perpassa
Um salso cheiro de lua.
E a lua, no êxtase, cresce,
Se dilata e alteia e estua.
O poeta se deixa em prece
Ante a beleza da lua.
Depois a lua adormece
E mingua e se apazigua…
O poeta desaparece,
Envolto em cantos e plumas
Enquanto a noite enlouquece
No seu claustro de ciúmes.

Vinicius de Moraes

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